segunda-feira, 7 de abril de 2014

Vinhas guardadas por corujas

Os enólogos são como os chapéus. Existem em abundância e variedade. A maioria dedica-se em exclusivo a um ou dois produtores e só trata mesmo do vinho. Outros têm avenças com muito produtores e também só se interessam pelos assuntos da adega. Depois, em muito menor número, existem enólogos a quem o título de engenheiro assenta na perfeição porque, entre as cubas, no meio das vinhas ou em frente ao computador a desenhar planos estratégicos, fazem vinhos que acrescentam saber ao negócio da vitivinicultura.
 
 
Não são técnicos; são criadores. São enólogos todo-o-terreno e com espírito de rebeldia. E um deles é Bernardo Cabral, o responsável pela área dos vinhos e dos azeites da Companhia das Lezírias (CL), que acaba de criar um novo selo para as suas marcas: o ABC 2020, que, traduzido, quer dizer "mais ambiente, mais biodiversidade e menos carbono".
 
Obcecado com a proteção da natureza e consciente de que esta até lhe pode dar mais lucros, Bernardo Cabral avaliou todas a fases de produção e começou por baixar o consumo de energia, reduzindo assim a pegada de carbono da CL. Meteu um telhado novo na adega porque o isolamento térmico implica menos máquinas de frio; criou túneis de luz natural para evitar lâmpadas acesas; recuperou cubas antigas de cimento que não usam sistemas de refrigeração; comprou garrafas com menos espessura de vidro; reduziu ao mínimo o consumo de água; baixou radicalmente os tratamentos nas vinhas; eliminou os processos de colagem dos tintos; dispensou as leveduras de fermentação (só mesmo as leveduras indígenas) e deixou viver as vinhas velhas não regadas e pouco produtivas porque considera que estas são parte integrante do ecossistema da Reserva Natural do Estuário e da Zona de Proteção Especial da Rede Natura 2000. Já agora, convém dizer que mais de 50% da área total da CL (18 mil hectares) faz ainda parte da Reserva da Biosfera e das redes internacionais Ramsar, Esmeralda e Wetlands.

Quem sair de Alcochete em direção a Vila Franca de Xira, contemplando a construção desordenada nas margens da EN118, não imagina que, do seu lado esquerdo e uns quilômetros em direção ao curso do Tejo, encontrará uma espécie de santuário de vinhas velhas circundadas de floresta por todos os lados - protegendo as cepas de inúmeras pragas - e onde os coelhos e as lebres saltam debaixo dos nossos pés e ficam provocatoriamente erguidos nas patas a desafiar-nos, prestes a provocar um ataque cardíaco a qualquer caçador sem arma à mão. Não tenho memória da última vez que vi tanto coelho a meia dúzia de metros do meu focinho. Coelhos que se apresentam com este ar tranquilo porque, nas vinhas da CL, a caça é proibida.
 
Mas como muito coelho pode ser um perigo para as vinhas, entra em cena a ave que dá o nome ao novo vinho da CL: o Tyto alba (branco e tinto), que é o nome científico da nossa popular coruja-das-torres. Esta ave de porte elegante, e que à noite parece um fantasma no céu, existe em abundância na lezíria do Tejo, sendo fundamental para a manutenção do equilíbrio ambiental, visto que se alimenta de micromamíferos. Donde, como o Tyto alba é um bom aliado de Bernardo no equilíbrio da população dos coelhos e outros bicharocos, fica agora homenageado numa garrafa de tinto e noutra de branco.
 
Feito à base de Fernão Pires, o branco de 2013 é um vinho com caráter, combinando aromaticamente notas de tília, malmequer e uns ligeiros tostados da barrica. Na boca, volumoso, gordo, mas com frescura e um toque levemente doce. Evoluirá bem.
 
O Tyto alba 2011 é um caso curioso. Imagine o leitor que está a pisar o chão de uma floresta com eucaliptos, caruma de pinheiros, galhos partidos, cogumelos e demais plantinhas, e é a isso que este vinho feito de Touriga Nacional, Touriga Franca e Alicante Bouschet cheira. Fantástico. Na boca, sentimos frutos pretos e vermelhos, especiarias e notas minerais que dão frescura e longevidade ao vinho.
 
Fonte: Negócios

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