sexta-feira, 11 de abril de 2014

Delícias do mar

Nada em harmonização é absoluto. Qualquer resposta vai sempre iniciar com um “depende”. Depende do corpo e da acidez do prato, depende da técnica de cocção utilizada, depende da idade do vinho, depende, depende, depende. Mas se alguma coisa se aproxima do absoluto em termos de harmonização é que frutos do mar come-se com vinho branco, certo? Depende...
 
Em primeiro lugar, é preciso definir bem do que estamos falando quando se trata de frutos do mar. Os peixes podem ser enquadrados como frutos do mar, mas, além deles, existem os moluscos, os crustáceos e uma longa série de outros seres aquáticos que são consumidos por nós, o que inclui ouriços do mar, pepinos do mar, tartarugas, vegetais etc.
 
Para nosso propósito aqui, vamos nos concentrar nos moluscos e nos crustáceos. E agora sim, não há dúvida, estamos falando de harmonização com vinhos brancos, certo? Quase.
 
O filo dos moluscos se subdivide, entre outras, nas classes: bivalves (como ostras, vieiras, mariscos e mexilhões, além dos demais moluscos de duas conchas); gastrópodes (como abalone, conch, loco, que são caramujos do mar); e cefaloides (polvos e lulas). Os melhores representantes do filo dos crustáceos são a lagosta, o camarão, o caranguejo e o lagostim. Diante dessa explicação, vamos à harmonização.
 
Os tipos de vinho branco
 
A regra geral diz na maioria das vezes: vinhos brancos. Mas isso não é suficiente, os frutos do mar são diferentes entre si, assim como os vinhos brancos. Então, mesmo certos de que uma harmonização entre frutos do mar e vinhos brancos (quaisquer que sejam) dificilmente será desagradável, vamos tentar aumentar o prazer dessas combinações, esmiuçando as nuanças de parte a parte.
 
Em primeiro lugar, vale a pena enfatizarmos a razão pela qual os frutos do mar e o vinho tinto não se dão bem. O principal responsável pelo desentendimento é o iodo. Peixes e, principalmente, frutos do mar são ricos em iodo e esse elemento, em contato com os taninos do vinho tinto, causa uma sensação de sabor metalizado na boca que pode ser bastante desagradável. Assim, não se trata apenas de preferência, mas, sim, de incompatibilidade. No entanto, ainda voltaremos os tintos para justificar o “quase” mencionado anteriormente.
 
Fixemo-nos, por hora, nos vinhos brancos. Vamos flexibilizar alguns padrões, driblar algumas regras, subverter algumas ordens e agrupar os brancos que melhor harmonizam com frutos do mar em três grupos: vinhos leves e refrescantes, vinhos aromáticos e vinhos encorpados. Para fazermos esse agrupamento, consideramos as características usuais de cada tipo, mas reconhecemos, desde já, que há vinhos que fogem ao padrão de casta, origem, etc.
 
Ostras vão bem como um Chablis,
 mas também podemos experimentar
 um Muscadet, um Pinot Grigio,
 um Verdicchio ou um Assyrtiko
O grupo dos leves e refrescantes de pronto dizimará a ideia de que estamos falando de vinhos simples ou vulgares pelo simples fato que começaremos a elencá-lo pelo Chablis. Incluímos também os não menos excitantes Muscadet e completamos a lista com Pinot Grigio (e suas variações regionais), Orvieto, Soave, Verdicchio, Albariño, Assyrtiko, Vinho Verde e até mesmo os Chenin Blanc sul-africanos.
 
Dentre os aromáticos, o destaque vai para o rei dos brancos, o Riesling. Ele está bem escoltado por: Gewürztraminer, Muscat, Viognier, Arneis, Vermentino, Gavi di Gavi, Grüner Veltliner e Torrontés.
 
Entre os encorpados não poderíamos deixar de iniciar com aqueles que são considerados por muitos os melhores brancos do mundo, os vinhos da Côte de Beaune (de Aloxe-Corton a Chassagne-Montrachet). Mas o resto do grupo não faz feio, pelo contrário, disputa palmo a palmo (ou melhor, taça a taça) quem mais se aproxima dos líderes. Entre eles destacamos outros Chardonnay, sobretudo os americanos, australianos e neozelandeses, os Hermitage, os Châteauneuf-du-Pape, os Savennières, os Greco di Tufo e os Sémillon (australianos).
 
Os mais atentos devem estar se perguntando, onde estão os Sauvignon Blanc e os espumantes? Vamos usá-los como coringas pela versatilidade. Os Sauvignon Blanc poderiam, com a mesma envergadura, compor tanto o grupo dos leves e refrescantes como dos aromáticos, pois as duas características são inerentes à casta e as variações de vinificação e origem emprestam ainda mais variabilidade e, consequentemente, versatilidade ao vinho.
 
Com relação aos espumantes, não é preciso repisar que suas características fazem deles os mais versáteis em termos de harmonização. Vinhos alinhados, tratemos agora da comida.
 
Moluscos
 
Como limitamos nosso escopo apenas aos moluscos e crustáceos, nosso campo de batalhas é... imenso. Comecemos, então, com os moluscos. É muito comum consumi-los em preparações muito simples, como ostras frescas com limão e mexilhões cozidos em vinho branco apenas com alho e cebola. Isso não quer dizer que eles não se prestem a elaborações mais complexas.
 
Nossa primeira sugestão é: nas preparações simples, como as citadas acima, optar pelos do grupo dos brancos leves e refrescantes. As ostras ficam ainda mais saborosas quando harmonizadas com um Chablis, por exemplo. A elevada acidez do vinho se equilibra com o limão e, ao mesmo tempo, corta um pouco do sal da ostra. Adicionalmente, a mineralidade inerente ao Chablis, originada no solo calcário da região, parece ter sido criada pela mesma mão que fez as ostras. Como aquele ingrediente que colocamos em vários pratos ao mesmo tempo, ostras frescas e Chablis é uma daquelas harmonizações que fica gravada em nossa lembrança para sempre. Mas, como o que mais queremos é variar, não deixe de tentar as ostras com um Muscadet, um Pinot Grigio bem escolhido, um Verdicchio ou um Assyrtiko. Este último é produzido, sobretudo, em Santorini, na Grécia, “na beira do mar” e sua mineralidade e salinidade se assemelham às de Chablis.

A combinação do Moules-Frites com o Muscadet Sèvre-et-Maine é
 inigualável,mas vale apostar também em um Albariño, um Orvieto ou um
Chenin Blanc sul-africano.

Moluscos em preparações simples pedem a companhia de vinhos brancos leves
 
Outras preparações bastante simples são as de mexilhões cozidos, à Provençal ou o tradicional Moules-Frites. Em qualquer uma delas será difícil vencer a harmonização com o Muscadet, sobretudo o inigualável Muscadet Sèvre-et-Maine do noroeste da França, onde o Loire se aproxima do oceano. Essa proximidade do mar agrega ao vinho muita mineralidade, o que é essencial para uma boa combinação com os mexilhões. O nível de acidez, usualmente, é um pouco mais baixo do que Chablis, por exemplo, mas perfeito para encarar o sal do fruto do mar. Tente também com um bom Albariño, um Orvieto ou um Chenin Blanc sul-africano.
 
O vôngole, outro molusco muito recorrente na culinária, pode ter quase as mesmas preparações do mexilhão. Um caldo de vôngoles cozido no vinho branco, com muito alho, cebola e salsinha é perfeito na beira da praia ou como uma entrada em um jantar de verão mais sofisticado. A sugestão aqui continua no grupo dos leves e refrescantes. Mas a preparação mais clássica do vôngole (receita napolitana) é com spaghetti. Os ingredientes não são muito diferentes do caldo que comentamos anteriormente, mas, neste caso, o vôngole é misturado à massa. A adição do amido dá uma nova dimensão ao prato e, se ainda assim ele continua fazendo belíssimas harmonizações com boa parte dos vinhos já citados, podemos agora lançar mão do nosso coringa, o Sauvignon Blanc, sobretudo o neozelandês. O brilho do vinho é inspirador e a harmonização, um sopro de vida nova, é uma brisa do mar refrescando nossos corações. Acidez e mineralidade são componentes óbvios dessa combinação, mas temos uma outra ponte sólida, as notas “verdes” recorrentes no Sauvignon Blanc e na salsinha. Elas se unem de forma indestrutível.
 
As vieiras também são moluscos bivalves, mas possuem características um pouco diferentes dos demais citados. Ela é mais delicada e seu sabor, quase adocicado. Este molusco se presta a preparações simples (grelhada, por exemplo) até ultrassofisticadas como a proposta pelo chef Daniel Humm, do restaurante Eleven Madison Park de Nova York (um dos dez melhores do mundo), que leva, além da vieira, erva-doce, estragão, tangerina e dill, para citar apenas alguns ingredientes. Trata-se evidentemente de um prato multidimensional que exige um vinho igualmente complexo. Sendo assim, podemos, então, ir para o grupo dos aromáticos, mais especificamente, o Riesling.

Mesmo em preparação simples, a lagosta pede vinhos mais encorpados
como um Châteauneuf-du-Pape branco, um Greco di Tufo ou um Sémillon.
A delicada e saborosa carne dos crustáceos abre espaço para brancos mais encorpados
 
Os Riesling alemães possuem seis distinções em função do tempo de maturidade das uvas (em sequência da menos para a mais madura, Kabinett, Spätlese, Auslese, Beerenauslese, Eiswein, ou Trockenbeerenauslese). Quanto mais maduras, maior o açúcar residual no vinho. Nossa harmonização ideal é com os Kabinett secos, sem nenhum açúcar residual. A combinação perfeita é possibilitada pelas pontes que unem prato e vinho, que neste caso são muitas, mas destacamos: mineralidade, doçura e acidez. A mineralidade do prato vem do fruto do mar enquanto a do vinho vem do solo de ardósia no qual são cultivadas as vinhas de Riesling no Mosel Saar Ruwer. A doçura está escondida tanto na vieira quanto no vinho apesar de parecer improvável visto que a vieira vive no mar e o vinho é seco. A acidez é uma das maiores características do Riesling e, neste prato, está presente no molho e no vinagrete de tangerina. Os melhores Riesling do Mosel são extremamente complexos e conseguem acompanhar sem problemas a roda-viva de sabores que o chef Daniel Humm propõe. Mas também não deixe de tentar um Vermentino, um Grüner Veltliner ou um Viognier.
 
As preparações apimentadas de frutos do mar, como as da culinária tailandesa, por exemplo, são outro pano de fundo perfeito para os vinhos aromáticos como o próprio Riesling ou mesmo um Gewürztraminer.
 
Evidentemente, as sugestões apresentadas para os moluscos são intercambiáveis, ou seja, uma ostra em uma preparação mais complexa pode harmonizar bem com um vinho do grupo dos aromáticos, assim como uma vieira grelhada ou em molho leve e/ou cítrico vai muito bem com um vinho leve e refrescante. A forma como os frutos do mar são preparados é fundamental para definirmos a harmonização.
 
Crustáceos
 
E o mesmo se aplica aos crustáceos. A carne deles é muito delicada e saborosa. Ela é, ao mesmo tempo, leve e marcante, com um discreto adocicado inconfundível. Um teste cego de carne de lagosta ou de caranguejo, por exemplo, terá poucos erros.
 
O caranguejo é um fruto do mar bastante versátil, pode aparecer só com limão na beira da praia com aquele martelinho, ou em uma salada bem elaborada, ou em um crabcake, ou ainda em um molho cremoso de gnocchi. E para cada uma dessas preparações podemos propor uma harmonização diferente.
 
Vamos seguir com a regra da simplicidade. Para a beira da praia e a salada, use os brancos leves e refrescantes, como o Chablis, o Muscadet e principalmente o Sauvignon Blanc. Adicionando um pouco mais de elementos na preparação, o Riesling se torna uma opção perfeita e, ao colocar manteiga ou creme, vamos para o terceiro grupo, os encorpados.
 

Dependendo da receita, o camarão
 pode combinar com os mais variados
 estilos de vinho branco.
Para o camarão, a regra não é diferente. Se for à paulista, tente combinar com Sauvignon Blanc, Verdicchio, Assyrtiko (do primeiro grupo). Para uma preparação tailandesa, como um Pad Thai, por exemplo, um Riesling ou um Gewürztraminer com pouco álcool (segundo grupo). A pimenta e o álcool são inimigos, por isso os vinhos devem ter baixo teor alcoólico. Para um camarão à Provençal, feito na manteiga, porém, já entramos no grupo dos brancos encorpados, principalmente no mundo do Chardonnay.
 
Além das preparações cremosas, os brancos encorpados harmonizam muito bem com camarões grelhados. Isso porque a grelha adiciona um amargor tostado que faz uma ponte com a madeira (também tostada) dos barris de carvalho onde repousam os vinhos encorpados que mencionamos. Então, para o camarão grelhado, um Chardonnay americano é uma excelente escolha. Para um risoto de camarão, vale um Sauvignon Blanc, um Chardonnay australiano ou um espumante. Para uma tradicional receita italiana de camarões com sálvia e feijão branco (cannellini), tente um belo Tocai Friulano.
 
Os crustáceos têm uma aura de sofisticação, sobretudo a lagosta. Por isso, reservamos para ela os grandes brancos da Côte de Beaune. Apesar da delicadeza do fruto do mar, as preparações em que a lagosta costuma ser servida pedem um vinho encorpado. Inclua-se na lista a tradicional lagosta à Thermidor, que é gratinada e leva creme leite em sua receita, ou mesmo um ravióli de lagosta. Ainda que ela seja servida em uma preparação mais simples, como uma salada, por exemplo, vale a pena investir em um branco mais encorpado como um Châteauneuf-du-Pape branco, um Greco di Tufo ou um Sémillon. A carne da lagosta tende a ser quase cremosa, o que nos remete à “cremosidade” do Chardonnay.
 
Se falamos apenas de brancos, então por que o “quase” lá do início? Porque toda regra tem exceções. Uma paella, por exemplo, em que os frutos do mar são componentes importantes, pode ser muito bem harmonizada com um Tempranillo. Uma bouillabaisse pode e deve ser escoltada por um belo rosé de Provence. E assim, outras exceções fazem a regra ser “perfeita”.
 
Por: Carlos Cordeiro
Fonte: Revista Adega

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