Vivemos numa sociedade de consumo regrada e infinitamente padronizada, uma sociedade que vive recheada de normas, modelos e regulamentos que gostamos de impor a nós próprios, limitando não só a inovação como rejeitando ao mesmo tempo algumas das tradições que nos chegam do passado. Gostamos de etiquetas, de regras bem definidas e sem campos cinzentos que possam perturbar a paz dos modelos artificiais que construímos.
Apesar de alguma dispersão, o mundo do vinho vive também ele preso a modelos e regras, muitas delas de criação recente e em negação com o passado. Uma dessas regras recentes garante que não existem pontos de contato entre os vinhos tintos e brancos, que os dois campos devem estar bem separados e que os dois mundos não se devem tocar e ainda menos conjugar. Mesmo se a tradição de um passado remoto nos garante que o modelo funciona, que existem razões para o fazer e que existem tradições que devem ser mantidas.
Tradições nacionais e europeias de mistura entre uvas tintas e uvas brancas que uma pequena região portuguesa teimou em manter e que acabou em força de lei graças à tenacidade e teimosia de um pequeno punhado de produtores, que não hesitaram em lutar pela manutenção de um vinho histórico que remonta à criação do reino de Portugal. Vinhos palhetes que sobreviveram às modas e ao passar do tempo, vinhos que descendem dos tempos medievais quando os vinhos tintos ainda se chamavam “vermelhos” e os vinhos brancos eram considerados os favoritos da nobreza.
São os vinhos medievais de Ourém, os antigos palhetes de Ourém, vinhos nascidos dos ensinamentos providenciados pela emérita Ordem de Cister do Mosteiro de Alcobaça… mas também vinhos nascidos do engenho do homem, da necessidade e vontade de simplificar um processo custoso e caro que o ardil humano conseguiu abreviar de forma satisfatória. Vinhos brancos pintados com uvas tintas, vinhos de gênese acelerada e consumo ainda mais rápido que satisfaziam o desejo pelo vinho novo pronto a ser vendido e bebido poucas semanas após a vindima.
Depois de vindimadas as uvas brancas, hoje obrigatoriamente da casta Fernão Pires, estas são prensadas em lagares sendo os mostos acondicionados logo após o esmagamento em tonéis de madeira que são mantidos em falta de modo a não exceder os 80% de capacidade total. Tonéis onde as uvas brancas vão fermentar em regime de bica aberta, sem contato com as películas. Depois de vindimadas as uvas tintas, hoje quase invariavelmente da casta Trincadeira, estas são desengaçadas procedendo a uma fermentação com curtimenta em velhas dornas de madeira ou, embora menos habitualmente, em lagares por um período de tempo que, consoante os anos e as condições de vindima, pode variar entre os quatro e os dez dias. Quando ambas as fermentações se aproximam do final, o mosto tinto não prensado e ainda com as películas, representando cerca de 20% do volume total do tonel, é acrescentado no tonel ao mosto branco, terminando as fermentações em conjunto para o casamento total dos dois vinhos.
Uma prática histórica que, entre outras razões, nasceu da necessidade de apressar tanto a elaboração do vinho como o momento de consumo. Quanto menos tempo os mostos se demorassem na adega, menos impostos teriam de ser pagos à Ordem de Cister, que diligentemente cobrava taxas pela utilização dos lagares divididas em períodos mínimos de 24 horas. Mas também porque, ao combinar uvas muito maduras de castas brancas vindimadas muito tarde para acrescentar grau alcoólico com uma percentagem muito pequena de uvas tintas, o vinho seria bebível muito mais cedo, despontando muito mais cedo para consumo caseiro ou para a venda nas muitas tabernas e mercearias da região.
A vontade de beber cedo os vinhos era tão grande, e a capacidade de resistência aos aromas e sabores dos vinhos novos era tão diminuta, que os tonéis antigos dos vinhos medievais de Ourém são conhecidos por terem não uma torneira no fundo mas sim várias aberturas espalhadas em diferentes posições e alturas nos tampos de modo a permitir retirar vinho logo após os primeiros momentos quando a coloração das uvas tintas entretanto acrescentadas ainda não era evidente no fundo do tonel… mas já perceptível e notória no seu topo. Por isso os tonéis antigos se encontram tão manchados e furados, numa espécie de homenagem à impaciência e à gula por um vinho novo.
Curiosamente, e porque as manchas do vinho que escorria das aberturas dos tampos ficavam marcadas nos tonéis depois de abertos, tornando fácil deduzir quando alguém se tinha ‘servido’ do vinho, muitos tonéis têm igualmente aberturas nos tampos do fundo onde por vezes os audazes atacavam na esperança de ninguém se entreter com a inspeção das “traseiras” dos velhos tonéis.
Histórias extraordinárias de um vinho único e especialmente interessante que seria o sonho de qualquer candidato a marketeer mas que no século XX quase foi extinto devido ao abandono do campo, à falta de entusiasmo na preservação das tradições e à falta de uma legislação comunitária e padronizada que não se encaixa facilmente nestes detalhes históricos que quase ultrapassam a imaginação. Por sorte e entusiasmo de alguns produtores que não deixaram cair o vinho em esquecimento, o vinho medieval de Ourém acabou por ser certificado e defendido há cerca de dez anos, ganhando um estatuto especial que teoricamente o livrará desse fim que parecia estar já anunciado. Cabe-nos a nós provar e beber os vinhos, descobrir a sua originalidade e defender mais um vinho que demonstra a incrível diversidade e riqueza dos vinhos portugueses.
Por Rui Falcão
Fonte: Fugas e Vinhos
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