Quem nunca se deparou com a expressão “vinho gastronômico” em uma resenha ou artigo sobre vinho? Sempre que lemos essa caracterização, ela parece fazer sentido, afinal sua compreensão é intuitiva, trata-se de um vinho que vai bem quando acompanhado de uma refeição. Mas existe uma definição clara do que seja um vinho gastronômico ou um grupo restrito ao qual somente uma especial categoria de vinhos tem acesso? Não.
O grupo dos vinhos gastronômicos é extremamente democrático e “politicamente correto”. Não há restrição quanto à cor, procedência, uva ou vinificação. Há espaço para as mais diversas classes. Então como reconhecer um vinho gastronômico?
Eles possuem algumas características semelhantes. Mas antes de enumerar esses pontos, é preciso destacar que praticamente qualquer vinho encontrará uma harmonização que o fará bem, contudo isso não é suficiente para que seja considerado um vinho gastronômico.
E talvez, derive daí mesmo a primeira característica dos vinhos gastronômicos: eles são versáteis. Possuem a capacidade de se harmonizar com um rol razoável de pratos.
O segundo aspecto comum entre os vinhos gastronômicos é possuir um volume moderado de álcool. Vinhos com pouquíssimo álcool são facilmente abafados por um prato minimamente elaborado, da mesma forma que um vinho com muito álcool tende a se sobrepor ao sabor da comida. Álcool em excesso traz, ainda, outros problemas de harmonização, pois é inimigo de pratos condimentados, que parecem ficar ainda mais pronunciados, e pratos muito salgados, que tendem a fazer o vinho parecer ainda mais alcoólico.
Assim como o nível de álcool, o corpo do vinho também deve ser moderado ou médio. Boa parte de nossas refeições se enquadram nesse espectro de corpo e, no caso de uma pequena variação para mais ou para menos, o vinho ainda será capaz de suportar. Evidentemente, pratos muito encorpados exigirão vinhos específicos, assim como pratos levíssimos.
Acidez é fundamental
Um elemento fundamental em um vinho gastronômico é a acidez. Ela aumenta a produção de saliva, ajudando a quebrar os alimentos. A acidez tem a capacidade de destacar os sabores dos pratos. Além disso, ameniza o sal, combate a gordura, “limpa” o palato e a língua e dá a estrutura necessária ao vinho.
A madeira é outro componente importante na construção dos sabores de um vinho. Mais uma vez, o vinho gastronômico se encontrará no meio do caminho. Nesse caso, até menos do que o meio. Ao mesmo tempo que o carvalho contribui decisivamente na criação da personalidade do vinho, adicionando e arredondando taninos, emprestando sabores tostados, caramelados etc, ele adiciona complexidade e corpo. Assim, um vinho com muita presença da madeira pode ser predominante sobre suas companhias.
Finalmente, a combinação desses fatores deve consubstanciar-se em um vinho equilibrado. Mas aqui pode haver alguma divergência de conceitos. Há quem entenda que o vinho gastronômico deve possuir alguma aresta, seja de taninos, seja de acidez, que o faria não tão bom quando consumido desacompanhado, mas que, quando bem harmonizado, essa aresta seria aparada pela comida. Respeitosamente discordamos desse entendimento.
Para nós, o vinho gastronômico é aquele que cresce diante de uma harmonização bem feita, assim como faz, recíproca e generosamente, o mesmo pelo prato que o acompanha. Independentemente de ter ou não arestas.
Acidez é um elemento fundamental para que os vinhos sejam versáteis em harmonização. |
Portanto, o vinho gastronômico não é aquele que só é bom acompanhado, é aquele que fica ainda melhor acompanhado.
Os tipos
Aos mais atentos não deve ter escapado que um tipo de vinho, em particular, cumpre com os requisitos de vinhos gastronômicos com sobras: os espumantes. Isso porque, além de terem boa acidez, corpo médio, moderado teor alcoólico e pouca madeira, possuem mais um elemento importante na harmonização, o gás carbônico. Ele contribui com a acidez no enfrentamento de sais, ácidos, gorduras, limpando e estimulando o palato. Evidentemente, temos que ter a regra do equilíbrio sempre em mente. Mesmo com tantas qualidades, o espumante ainda pode ser massacrado por um prato muito pesado. Do resto, ele dá conta.
Na verdade, há outro ponto fraco nos espumantes, mas reservado aos Brut. Diferentemente do que estamos acostumados a ver em festas, sobretudo de casamento, eles não vão bem com doces. Pratos doces exigem vinhos doces. Preferencialmente, mais doces que o prato.
Então, para se alcançar o equilíbrio pretendido em uma harmonização, é preciso compreender as interações entre comida e vinho.
Se o vinho já carrega em si uma complexidade sensorial, quando nos voltamos para os alimentos e suas preparações essa complexidade se multiplica. Elementos como acidez, amargor, gordura, sal, condimentos/pimenta, umami e açúcares se combinam em composições elaboradas com técnicas de cocção distintas, cada uma construindo um universo paralelo, em que apenas vinhos gastronômicos são capazes de se mover.
A escolha da garrafa certa passa pela compreensão de que pratos com boa acidez diminuem a percepção de acidez do vinho, que preparações com componentes amargos tendem a reduzir a adstringência em vinhos tintos, mas também podem realçar o amargo da bebida. É preciso ter mente que a gordura do prato tende a cortar a acidez e a adstringência do vinho (impossível não pensar em um churrasco com um belo Malbec, por exemplo). Ou ainda, como já mencionamos, os efeitos de pratos apimentados em vinhos com muito álcool.
Enfim, há um sem número de interações entre comida e vinhos, mas diferentemente da tabuada, das datas históricas ou de fórmulas matemáticas que tínhamos que decorar, descobri-las é um prazer conquistado a cada refeição.
Por: Carlos Cordeiro
Fonte: Revista Adega
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