Terroir pretende ligar a vinha à terra, a um local e condições específicas, juntando todos os elementos que tornam cada lugar único, homem e as suas práticas incluídas. Terroir é um dos argumentos mais pujantes e marcantes da velha Europa, o conceito que permite introduzir a consciência de denominação de origem, a valorização da terra, a ligação às origens.
Como ideia filosófica é genial, como conceito de proveniência é fabulosa, como adágio da intemporalidade do vinho é extraordinária. Infelizmente, é também uma palavra que, de tão abusada, acabou por perder muito do sentido original, deixando de servir para valorizar os poucos lugares verdadeiramente excepcionais onde a harmonia entre vinha e local é perfeita para assumir o papel mais corriqueiro de muleta de marketing constantemente evocada para justificar tudo e nada, para legitimar toda e qualquer conjuntura que se queira aplicar.
Mas mesmo na sua versão mais pura e afastada das obrigações corporativas o conceito de terroir, a justificação para a localização de algumas da vinhas históricas, pode ser disputado. A comercialização de vinho, e consequentemente a localização das vinhas, é uma narrativa que se estende desde há muitos milhares de anos, tendo tido origem, na sua versão mais moderna, no antigo Egipto, civilização que além de produtora era igualmente uma das maiores importadoras de vinho. Os fenícios deram uma ajuda notável no incremento da comercialização do vinho e na disseminação da vinha ao longo da costa do Mediterrâneo, condições que o império romano aperfeiçoou e a que acrescentou peso, ampliando o comércio de vinho a uma escala global.
A idade média e o período de trevas que lhe está associado constituíram um retrocesso de peso na comercialização do vinho mas um fomento impressionante na redistribuição das vinhas que por imposição eclesiástica foram alargadas a toda a área de influência da igreja. As dificuldades no comércio impuseram a produção de vinho local para a celebração da eucaristia numa norma forçada, circunstância que conduziu ao extremo de plantar videiras na Escandinávia na tentativa de produzir vinho para assegurar a celebração das missas locais.
Quando as condições para o comércio de vinho melhoraram, as vinhas começaram a ser plantadas em locais que facilitassem o transporte dos vinhos, preferencialmente junto a rios navegáveis. Quando a Europa, sobretudo a Europa Central, começou a construir canais de navegação que permitiram unir alguns dos principais rios europeus, o fator localização da vinha passou a assumir contornos diferentes, dependendo mais das condições climáticas mais favoráveis que da proximidade a redes de transportes mais eficientes.
As vinhas deixaram de ocupar os países de uma forma genérica ou oportunista em localização geográfica para se concentrarem nos locais onde a produção era mais consistente, mais fiável e onde apresentava maior qualidade. A globalização do consumo e a globalização da produção nos países do novo mundo acabou por reverter o conceito.
Muitas das vinhas atuais, dispostas nos diversos países do mundo, tanto na Europa como nos países do Novo mundo, vivem entremeadas entre o passado e o presente, entre a tradição e a inovação. Muitas das vinhas europeias mantêm-se nas mesmas regiões onde foram plantadas inicialmente por imperativos históricos, nem sempre ligados a critérios qualitativos. Muitas das vinhas dos países situados no novo mundo, mas também de algumas regiões europeias mais recentes, foram plantadas nos locais que estavam disponíveis e onde a tecnologia recente, nomeadamente a irrigação, permitem a sobrevivência e florescimento da vinha onde ela naturalmente nunca poderia sobreviver.
Por acaso, por sorte, por simples coincidência ou pela intervenção humana, muitas das paisagens vínicas acabaram por se transformar em terroirs de excepção. Mas quase sempre graças à intervenção pesada do homem, que condicionou a paisagem natural, transformando-a à sua medida para glória dos vinhos aí produzidos. O conceito de transformação do terroir é algo tão clássico quanto a existência de vinhas. Algumas das vinhas e regiões mais notáveis e que mais facilmente associamos à reputação do terroirdevem a sua fama tanto à intervenção humana como às suas características naturais.
Basta olhar para duas das regiões mais icônicas do universo do vinho, Bordéus e Douro. A região do Médoc, faixa de terreno que produz muitos dos vinhos mais afamados e caros do mundo, consistia num aglomerado de pântanos contínuos que só começaram a ser drenados no final do século XVI, reformando de forma radical as condições naturais de uma das regiões mais valorizadas de Bordéus. Da mesma forma, embora com necessidades práticas quase inversas, o Douro vitícola é consequência e benefício de uma das empreitadas mais desmedidas e épicas do homem, a criação dos socalcos e muros num exercício de terraplanagem sucessiva de encostas demasiado abruptas e selvagens para a instalação da vinha e olivais.
Um epílogo curioso que entra em conflito com alguns dos puristas do conceito de terroir, que chegam ao ponto de querer afastar o homem da equação reservando a noção deterroir para uma bênção da natureza. A conclusão razoável é que hoje, tal como no passado, a manipulação do terroir faz parte da atividade e da sabedoria do viticultor. Embora a palavra terroir pareça hoje estar reservada mais para os estrategas do marketing e da comunicação do que para os verdadeiros artífices do conceito, os viticultores e produtores.
Por Rui Falcão
Fonte: Fugas Vinhos
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