Toda ilha é uma ilha. Por mais próxima do continente que esteja, continuará
cercada de água, com isolamento e limites determinantes. Talvez por isso eu
sinta os vinhos produzidos em ilhas como originais, esquisitos, impertinentes.
Mesmo antigos e tradicionais, como os Madeiras, são fruto de uma visão afastada
das grandes massas de terra, carregam uma poesia adicional, mais no estilo homem
versus terroir que cúmplice dele.
Os exemplos são inúmeros: os de uva Assyrtiko em Santorini, Monica na
Sardenha, os de Vermentino na Córsega, as várias castas sicilianas e os
peculiares vinhos da Ànima Negra maiorquina. Nem sempre são uvas autóctones, mas
ganham características especiais nas versões insulares. O solo vulcânico da
Sicília é uma prova do que estou dizendo. E o ilhéu é antes de tudo um
precavido. A possibilidade de faltar tudo de repente e ele ficar lá, como um
Crusoé, é grande. Por isso a vinicultura em ilhas é diferente, precisa ser
inventiva, improvisadora.
Conheci Miquel Ángel Cerdá, um dos proprietários da vinícola Ànima Negra,
alguns anos atrás. Um boêmio workaholic, se o termo faz sentido. Um amigo dele
herdou um vinhedo com uvas estranhas para nós, Callet, Mantonegre e Fogoneu.
Chamou Cerdá, que naquele momento tocava uma empresa (de um barco só) ligando a
costa Valenciana na Espanha a Mallorca. Ele vendeu o barco (“transformei madeira
em madeira”, contou) para comprar barricas e, mais ou menos consciente de que
beberiam todo o vinho eles mesmos, pensou que pelo menos não faltariam boas
garrafas à mesa.
As primeiras vinificações foram feitas em um curral abandonado, parte da
propriedade, usando instalações originalmente destinadas a ordenha e
processamento de leite. O vinho seguiu o estranho caminho que fazem as coisas
predestinadas. Foi casualmente provado por Parker. Bem pontuado, virou líquido
de desejo. Os preços subiram, os sócios viraram empresários.
Cerdá continua igual, mesmo sendo dono de uma vinícola cult. Toda vez que vem
ao Brasil me presenteia com um livro de um artista de que gostamos muito: Miquel
Barceló. Foi Barceló que desenhou os rótulos do Son Negre, o caro e raro vinho
top da AN. Fez um peixe sobre um envelope que estava na mesa da cozinha, rasgou
e presenteou aos amigos: “Está aqui seu rótulo”. Quando me encontro com ele
sinto que as utopias são possíveis. Bebemos seus extraordinários vinhos e
raramente falamos deles, mas da vida.
A Callet ganhou o mundo. É realmente autóctone e seu habitat ideal é o solo
argilo-arenoso da ilha de Mallorca. Os vinhos da Ànima Negra, totalmente
orgânicos, foram incluídos na Arca do Sabor do Slow Food. Os dois sócios
começaram a explorar outras variedades regionais, em blends.
Toda viagem a São Paulo, Miquel Àngel fala de seu sonho que é vender tudo e
voltar para o mar, ficar navegando e olhando as estrelas com a família. Continua
queimado de sol, de camisa aberta no peito e desconfortável nos hotéis de luxo.
Seus olhos sorridentes só brilham de fato quando conta da matança anual do porco
e das festas em Felanitx, essa sua cidade com som de irredutível aldeia de
história em quadrinhos e meros 20 mil habitantes.
De tanto sonhar inventou Quibia, apelido que dá ao mar Mediterrâneo, um lugar
mítico onde tudo é bom, nome de seu vinho branco e local não geográfico, que
pertence a quem for e quiser ser seu cidadão. Um dia Cerdá vai mesmo recomprar
seu barco e voltar ao mar. Melhor beber seus vinhos antes disso.
Fonte: Estadão
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