sábado, 1 de novembro de 2014

Campanha: o vinho da região que o Brasil precisa descobrir

A paisagem que acompanha quem segue de Porto Alegre até a Campanha Gaúcha, região do Rio Grande do Sul que faz fronteira com o Uruguai, é plana, com algumas colinas, ora recortada por eucaliptos, ora ponteada pelas cabeças do gado europeu que pasta naquelas planícies. Apesar de bastante verde, a terra que segue até o horizonte é pobre em material orgânico - o solo é predominantemente arenoso e a drenagem é eficaz. Nesta época do ano, a Campanha vai se despedindo do inverno, que costuma ser muito frio e com poucas chuvas, para receber o calor - também intenso. Condição que faz amadurecer naturalmente as bagas das uvas finas que começam a brotar neste período, para serem colhidas lá para março ou abril.
 
A conjunção de clima e terrenos apropriados, investimento em tecnologia e vocação, tem feito da Campanha Gaúcha uma das mais promissoras fronteiras vinícolas do País. Essa observação não é de hoje. Vem lá da década de 1970, quando a Almadén decidiu plantar ali suas uvas no método espaldeira - um moderno sistema de conduzir as vinhas. Atualmente, a empresa, que reinou absoluta na região até os anos 2000, possui o maior parreiral contínuo da América Latina, usando 585 dos seus 1,2 mil hectares, na cidade de Santana do Livramento, para a produção anual de 4 milhões de litros de vinho/ano. Braço da Miolo, a vinícola produz vinhos brancos e tintos, espumantes e frisantes.
 
A chegada dos “grandes” e o estímulo dos bons preços pagos pelas uvas viníferas fez com que, pouco a pouco, o cenário da Campanha fosse mudando, resultado da redescoberta da região. Muitas áreas ligadas à pecuária foram dando lugar a parreirais - segundo dados da Associação dos Produtores dos Vinhos Finos da Campanha Gaúcha, a área de vinhedos implantados já supera os dois mil hectares, com 16 empreendimentos vitivinícolas respondendo pela produção.
 
O novo perfil agrupa jovens empresários do agronegócio, profissionais liberais e empreendedores de outros ramos, como é o caso do narrador esportivo Galvão Bueno, que desde 2006 flerta com o mundo do vinho. Em sua propriedade, no município de Candiota, são plantadas as uvas cabernet sauvignon, merlot, petit verdot, sauvignon blanc e pinot noir. A primeira vinificação da Bueno Bellavista Estate ocorreu em 2010 - o processo é feito na Miolo Wine Group, da qual o empresário é sócio. Uma das grandes apostas de Bueno para o próximo ano é o tinto Paralelo 31 (um corte das uvas cabernet sauvignon, merlot e petit verdot). No terreno de 100 ha, 29,6 são dedicados às uvas. Mas também é possível avistar oliveiras. “Além de paisagismo, é incremento do negócio”, afirma Daniel Fernandes, gerente. “O projeto é que, dentro de dois anos, a gente também produza o azeite Bueno”, destaca o agrônomo Ed Vard Kohn.
 
Diversificação também foi a mola propulsora para que a Routhier & Darricarrère, uma pequena mas robusta vinícola na cidade de Rosário do Sul, começasse a sua produção. Os sócios iniciaram o projeto apostando na citricultura (parte da tangerina colhida por lá vem para o Nordeste, inclusive). A partir daí, em 2002, com suporte da tradição da família no cultivo de videiras, Pierre e Jean Darricarrère iniciaram uma vinícola artesanal, com suporte na colheita vinda de cinco hectares de videiras merlot, cabernet sauvignon e chardonnay. Hoje, a vinícola produz anualmente de 20 a 40 mil garrafas entre tintos, brancos e espumantes, feitos pelo método tradicional. Herdeiro da vinícola, o jovem enólogo Anthony Darricarrère, 34 anos, conta que tem ainda pequenas castas de tannat e sauvignon blanc, embora em sua opinião a cabernet é a que teve a melhor adaptação ao local.
 
Os vinhos produzidos por lá tem corpo médio, com 12 a 13% de graduação alcoólica. A premissa segue a utilizada por boa parte das vinícolas da Campanha: a produção de vinhos jovens, envolventes, de fácil apreciação. O top da produção é o Salamanca do Jaral. Feito com uvas cabernet sauvignon, ele foi elaborado com a filosofia de terroir extremo: para fermentar, foram usadas leveduras que naturalmente existem na própria uva e a maturação foi feita em velhos barris de carvalho. De edição limitada, o vinho foi assim batizado em referência a uma lenda gaúcha. Além das edições limitadas, a empresa aposta nas linhas Província de São Pedro (cabernet sauvignon e chardonnay) e ReD - facilmente identificável por uma Kombi vermelha no rótulo. A linha ReD traz o corte cabernet sauvignon e merlot e também um espumante brut, em método champenoise.
 
VINICOLA BOUTIQUE - O preciosismo com os detalhes da Estância Guatambu, no município de Dom Pedrito, a 441 km de Porto Alegre, impressiona - e são traduzidos, claro, nos vinhos produzidos ali. Quando em 2003, o patriarca, Valter Potter, convencido pela filha mais velha, Gabriela, que se formava em agronomia, decidiu apostar “meio hectare” das suas terras para a plantação de uvas e vinificação, não esperava que o negócio se tornasse a menina dos olhos da família - tradicionalmente ligada à criação de gado de raças europeias, como a Polled Hereford, e plantação de soja e arroz, há 56 anos.
 
Daquele ano para cá, o sonho só cresceu: ali foi erguida a sede que, além da produção de vinhos - iniciada em 2008 e que hoje chega a 90 mil garrafas/ano -, tem um foco muito claro no enoturismo. A sede recém-inaugurada, um charmoso casarão de 3 mil metros quadrados, onde funciona loja, anfiteatro, museu-mirante, área industrial, cave de garrafas, laboratório e restaurante, serve de ponto de encontro para as experiências propostas: degustar, almoçar e “camperear”. “Aqui fazemos uma imersão nos costumes da região para brasileiros e também para visitantes de fora, pois estamos em uma região de fronteira”, explica Isadora Potter, advogada, que agora também cuida dos negócios da Guatambu.
 
Ela explica que os pacotes vão de uma degustação de rótulos premiados da vinícola, entre eles a linha Rastros do Pampa, até uma experiência mais completa, com almoço e cavalgada pelos campos e 22 ha de vinhedos das uvas chardonnay, cabernet sauvignon, sauvignon blanc e pinot noir, plantadas ali. O almoço na Guatambu é uma experiência à parte. No Restaurante Rastros do Pampa, espinhaço de cordeiro ao paço da fronteira ou entrecote e assado de tira na parrilla, mais tradicional estilo gaúcho de servir pedem a harmonização com o premiado - e às vezes incompreendido - tannat safra 2013, eleito o melhor vinho tinto nacional na Expovinis deste ano.
 
Para Gabriela, precursora do projeto, a diversificação só é possível porque o bioma da região (o Pampa) permite. “Sempre buscamos a biosustentabilidade da terra. E temos a tecnologia como nossa aliada, o que permite, inclusive, a redução total de uso de defensivos agrícolas nas nossas plantações”, explica, apresentando técnicas de produção como a maceração a frio e processo de gravidade no processamento da uva. “Pequenos detalhes que são fundamentais”. Detalhes como a instrumentalização da estância para fazer as análises da maturação de cada uva, para saber o tempo exato da colheita. “O laboratório que existe, fica em Bento Gonçalves, muito distante para o tempo que precisamos dessas respostas”. O investimento da Guatambu mira mais longe: “Todos os nossos processos são padronizados, para que futuramente possamos obter a certificação para exportação”, vislumbra. “Foi um investimento muito alto, mas estamos tendo um retorno muito bom”.

Por Gustavo Belarmino
Fonte: NE10

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