sábado, 5 de janeiro de 2013

O berço dos vinhos tropicais

Por Andréia Debom
Fotos Fabiana Lavoratti

Que imagem você tem do sertão do nordeste brasileiro? Solo árido, sol, caatinga, jegues? Agora, olhe para a foto ao lado. A imensidão de terras, antes pincelada de cinza, agora tem o verde das plantações como cor predominante. É o Vale do São Francisco, uma área de terras banhada pelo grandioso Rio São Francisco e situada entre os Estados da Bahia e Pernambuco. Milagre? Não. É a tecnologia da agricultura irrigada. Nessas terras férteis as frutas são destaque. Há uma mistura de cores, aromas e sabores. Acerola, caju, manga, melancia e uva. Sim, a videira, planta que reina absoluta na Serra Gaúcha e que é a base para o sustento de muitas famílias também frutifica neste oásis nordestino. Nessas terras são plantadas variedades para consumo in natura e também para elaboração de vinhos finos, que inclusive têm recebido prêmios nacionais e internacionais nos últimos anos. O último deles foi para um tinto da variedade Syrah elaborado pela Vinícola Ouro Verde, empresa do grupo Miolo. O Testardi conquistou o primeiro lugar na categoria Tinto Nacional na degustação Top Ten promovida durante o Expovinis 2012, maior salão do vinho realizado na América Latina.
 
 
Terroir diferenciado

Cada garrafa de vinho traz uma história, e nenhuma é igual a outra. O Brasil possui nove regiões vitícolas. Cada uma delas elabora produtos com tipicidades distintas, já que os fatores naturais e humanos se diferem. É o chamado terroir. O Vale do São Francisco se caracteriza por apresentar vinhos tropicais, produtos leves, sem pretensões de guarda, fáceis de beber e com boa relação qualidade/preço. Esta região está integrada pelos municípios de Casa Nova, na Bahia; e Petrolina, Lagoa Grande e Santa Maria da Boa Vista, em Pernambuco. Por lá, a produção de vinhos iniciou por volta dos anos de 1980, por meio da vinícola Botticelli, e foi reforçada no início dos anos 2000 com a chegada de grandes investidores, entre eles os grupos Miolo, da Serra Gaúcha, e Dão Sul, de Portugal.

Atualmente, existem seis vinícolas, uma na Bahia e cinco em Pernambuco, que produzem cerca de sete milhões de litros de vinhos finos por ano, em 700 hectares de vinhedos. A atividade emprega cerca de 6 mil pessoas, direta e indiretamente, chegando a 30 mil se for incluída a produção de uvas de mesa. A região está situada entre os paralelos 8 e 9 do Hemisfério Sul, em clima tropical semiárido. Está a 350m de altitude, com média anual de temperatura de 26ºC, índice de pluviosidade de aproximadamente 550 mm, concentrada entre os meses de janeiro a abril.

Um dos fatores que mais chama a atenção no Vale do São Francisco é a capacidade de a colheita acontecer durante o ano todo, caso único no mundo. Numa mesma vinícola é possível observar todos os ciclos do vinhedo, desde o plantio até o momento em que as uvas são colhidas. “Por se tratar de uma região de clima quente, com alta luminosidade e água em abundância para a irrigação, as empresas vinícolas fazem um planejamento da época em que pretendem colher. Depois, realizam a poda de produção das videiras em diferentes períodos, adotando, com isso, o sistema de escalonamento para a poda dos lotes, o que proporciona períodos diferentes de colheita. Entre uma safra e outra, reduzem a irrigação para 15% a 20%, nos períodos secos, por cerca de 20 a 30 dias (este corresponde ao período de inverno em regiões temperadas). Em seguida, podam, aplicam cianamida hidrogenada para homogeneizar a brotação, aumentam a irrigação para 100% do coeficiente de cultura e um novo ciclo é iniciado”, explica o pesquisador das áreas de viticultura e enologia da Embrapa Semi-Árido, Giuliano Elias Pereira. O pesquisador também destaca outra característica importante das empresas: a possibilidade de escalonamento da produção. Com isso, não são necessárias grandes estruturas para vinificação em função da não concentração da produção em um período curto.

As variedades mais utilizadas para a elaboração de vinhos tintos finos são Syrah, Tempranillo e Cabernet Sauvignon. A estas cepas se soma as variedades Alicante, Aragonês, Tannat e Rubi Cabernet. Mas há outra que tem se destacado nas pesquisas da Embrapa Semi-árido: é a Petit Verdot. “Acredito no potencial desta uva. Ela pode ser a uva emblemática desta região, já que Syrah podemos encontrar em várias partes do mundo”, diz o pesquisador. Para vinhos brancos, Chenin Blanc e Moscato Cannelli se destacam, além da Sauvignon Blanc, Verdejo e Viognier. Para os espumantes, ganham espaço as variedades Itália, Chenin Blanc e Syrah. “Os vinhos apresentam características interessantes. Os brancos são leves, com aromas florais, fáceis de serem consumidos. Os tintos são variados, desde vinhos leves, jovens, até vinhos mais encorpados, que passam por algum período em barricas”, pontua Pereira. Os espumantes naturais são, na maioria, secos ou demi-sec, além do moscatel.

O sistema de condução mais utilizado é a latada, seguido pelo espaldeira. No entanto, outras formas estão sendo testadas pela Embrapa Semi-Árido. Uma deles é o lira modulável, um sistema de condução usado com sucesso em diversos países, cujos trabalhos realizados são obrigatoriamente manuais. A lira modulável, que pode ser mobilizada em determinados períodos do ciclo vegetativo da videira, pode ser um alternativa para a região, pelo fato de permitir a mecanização dos tratos culturais nos vinhedos. O estudo está sendo feito em parceria com o INRA Supagro de Montpellier, da França, e conta com a participação do especialista Alain Carbonneau, que está realizando estudos comparativos entre o uso da espaldeira e da lira modulável em uvas brancas e tintas, com diferentes porta-enxertos, no intuito de avaliar a melhor combinação que permitirá melhorar a tipicidade dos vinhos e reduzir os custos de produção.
 
Poda das Videiras
No vale é possível encontrar, na mesma época, vinhedos em floração...
... em fase de amadurecimento da fruta...
... e com as uvas maduras.
Após a colheita acontece a retirada das folhas e posteriormente a irrigação.
Vinícola Ouro Verde

De um lado da estrada, terra árida, jegues e bodes andando tranquilamente. De outro, vinhedos imensos, repletos de frutos. Na companhia dessas vinhas, mandacarus e cactos. O Vale do São Francisco é mesmo surpreendente. Na terra onde tudo frutifica, percebe-se que muitas pessoas depositam suas expectativas. Alguns desses personagens são peças chave para a construção desse sucesso. Pessoas como o empresário gaúcho Eurico Benedetti. Há mais de 10 anos ele está à frente da Vinícola Ouro Verde, localizada no município de Casa Nova, na Bahia. Entusiasta do potencial da região para vinhos tropicais, Benedetti também incentiva o enoturismo. Tanto é que no ano passado, em parceria com o empresário Luiz Rogério Rocha Pereira, apostou num passeio turístico denominado Vapor do Vinho, por meio do qual os turistas passeiam pelo Rio São Francisco e Barragem do Sobradinho em uma embarcação que serve vinhos e espumantes e ao final param na Vinícola Ouro Verde para conhecer a empresa e participar de um curso de degustação de vinhos. A vinícola, inaugurada em 2008, ainda não possui um restaurante para os turistas, mas a construção de um está nos planos do empresário. Somente em 2011 a empresa recebeu 16,3 mil visitantes.
 
Instalações da Vinícola Ouro Verde, onde são elaborados os produtos da marca Terranova.
A história da Vinícola Ouro Verde iniciou em 2002, quando Benedetti, que no Rio Grande do Sul é empresário do setor moveleiro, decidiu adquirir a Fazenda Ouro Verde. Na época, a propriedade produzia uvas de mesa para consumo in natura. Ir para o nordeste seria uma forma de ampliar os negócios da família no setor vitivinícola, já que no Rio Grande do Sul a família sempre teve ligação com o vinho. Logo depois da compra da área, iniciaram os testes para verificar o potencial das uvas e posterior elaboração de vinhos. Os resultados obtidos mostraram que com as uvas moscatéis se poderia elaborar vinhos espumantes frescos, mas seria necessária alta tecnologia para vinificação, já que a região é muito quente, o que acaba sendo um problema para o vinho. Feitos os investimentos, hoje o espumante, especialmente o moscatel, caiu no gosto dos consumidores, sendo o carro-chefe das vendas da empresa.

E se os espumantes têm apresentado resultados positivos, os tintos também. Prova disso é que o vinho Testardi Syrah 2010 foi destaque neste ano na degustação Top Ten que acontece durante a Expovinis. O vinho foi elaborado por meio de fermentação integral dentro de barricas novas de carvalho e envelheceu em barricas de carvalho por 12 meses. Nas brancas, a Chenin Blanc tem respondido positivamente, entre outras. Outras cepas vitiviníferas estão em testes. “Esta região tem muito potencial. Aqui não se desenvolvem fungos, praticamente não tem umidade. E isso representa muito para o vinho. Os vinhos finos daqui carregam características dessa região e podem ser trabalhados sem problemas. Na Serra Gaúcha temos 120 anos de cultura; aqui, estamos aprendendo a trabalhar”, destaca Benedetti, que salienta também a qualidade do suco que pode ser feito com uvas do Vale.

A Vinícola Outro Verde produz anualmente dois milhões de litros entre vinhos e espumantes, em 200 hectares próprios, e mais 520 mil litros de vinho para brandy. Até 2018, a empresa do grupo Miolo, que produz a linha Terranova, tem estimativa de produzir cinco milhões de litros de vinhos e 4,8 milhões de litros de vinhos para brandies, ampliando os vinhedos para 400 hectares.
 
Vinícola Vinibrasil

Produzir uvas no calor dos trópicos brasileiros. A ideia poderia ser vista como um tanto estranha. Não para um grupo português, que viu nas terras banhadas pelo Velho Chico uma oportunidade de ampliar seus negócios e se internacionalizar. Em 2002, o Grupo Dão Sul, um dos maiores de Portugal, depois de fazer várias pesquisas, inclusive no Rio Grande do Sul, decidiu investir em vinhedos no Vale do São Francisco, especificamente no município de lagoa Grande, em Pernambuco.

“Quando chegamos nesta região já havia alguns estudos que afirmavam que aqui poderíamos cultivar uvas finas, mas não havia nada que nos indicasse a variedade da uva, o que tipo de porta-enxerto. Por isso, o primeiro projeto que fizemos foi um campo experimental. Pegamos algumas variedades que tinham potencial para a região, e eram comercialmente viáveis para nós, e plantamos”, conta o enólogo da Vinibrasil, Ricardo Henriques. Hoje esta área para experimentos, de quase 6 hectares, tem 25 variedades, além de um banco genético com mais 50. As 15 cepas que mais se adaptaram estão implantadas em 200 hectares, entre elas Cabernet Sauvignon, Syrah, Aragonês, Touriga Nacional, Alicante Bouschet e Moscato Canelli.

A tecnologia empregada para a irrigação das vinhas e elaboração do vinho rendeu à empresa, em 2006, o Prêmio Finep de Inovação Tecnológica. Além da distinção na área técnica, os vinhos da empresa receberam alguns destaques importantes, entre eles o de ser o melhor tinto brasileiro no Concurso Internacional de Vinho do Brasil, em 2003; o primeiro vinho brasileiro a receber 83 pontos pela revista Wine Spectator, uma das mais importantes do setor mundialmente, em 2004; e o melhor tinto brasileiro na degustação Top Ten, na Expovinis 2006.

A capacidade da vinícola é de 1,8 milhão de litros por ano. Desse total, mais da metade do que é produzido é de vinhos brancos, tintos e rosés. A outra parte, 40%, é espumante. “Mas nosso objetivo, já neste ano, é aumentar a quantidade de espumantes, já que o mercado, especialmente o brasileiro, tem respondido bem a este produto”, conta o enólogo.
 
Ricardo Henriques, enólogo da Vinibrasil.
Vinho na Chapada Diamantina baiana
 
Além do Vale do São Francisco, a Bahia investe em pesquisas para ampliar a área da vitivinicultura no Estado. Um bom exemplo é a cidade de Morro do Chapéu, distante pouco mais de 400 quilômetros de Casa Nova. Os vinhedos experimentais, localizados a 1.200 metros de altitude – no Vale do São Francisco a altitude é de 350 metros – foram implantados em fevereiro de 2011, uma parceria entre a Secretaria Estadual da Agricultura, Embrapa, Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola, Associação de Produtores do município e prefeitura. “Em Morro do Chapéu a altitude compensa a latitude, fazendo com que as videiras respondam diferentemente. As avaliações estão sendo feitas em diversas variedades implantadas, onde serão determinadas aquelas que serão divulgadas aos produtores, como aptas a serem utilizadas comercialmente”, explica o pesquisador da Embrapa Uva e Vinho, Giuliano Elias Pereira. Outro fator positivo é que nesta região a temperatura pode chegar aos 12ºC. Mesmo assim, é necessária a irrigação, já que o verão é quente. O vinhedo experimental, pouco mais de um hectare, possui 10 variedades plantadas. Entre os destaques está a Sauvignon Blanc e a Malbec. A previsão é de uma colheita por ano.

As primeiras uvas do Morro do Chapéu nem foram colhidas, mas a possibilidade de ter o vinho como um produto local anima os moradores. Tanto é que diversas pessoas estão envolvidas no projeto, seja na organização e acompanhamento ou na torcida para que ele dê certo. Uma delas é Odilésio Gomes. Empresário do setor hoteleiro e presidente da associação de produtores, ele vê na vitivinicultura uma chance de desenvolver a agricultura familiar no município que já é produtor de outras frutas. “Temos que adequar a vocação desta terra para a cultura certa. A viticultura irá dar esse aproveitamento”, diz Gomes.

A ideia de plantar vinhas em Morro do Chapéu surgiu em 2010, logo após a visita do francês Cristian Jojô (presidente da Associação de Produtores de Vinhos e Champanhes da França). A convite do Superintendente da Política do Agronegócio, Jairo Vaz, ele fez uma análise prévia de solo e clima e destacou o potencial para a cultura. Depois disso, iniciaram as tratativas entre governo, Embrapa e associação de produtores para de iniciar o projeto de plantio do vinhedo experimental. “Depois de avaliar o potencial enológico das uvas e dos vinhos esta região poderá ser uma referência em termos de vinhos finos de altitude”, afirma o pesquisador da Embrapa, Giuliano Pereira.

Além de Morro do Chapéu, outra cidade na Chapada Diamantina, Mucugê, possui um vinhedo experimental. Por lá, as uvas serão colhidas em 2013.
 
Diversas variedades estão em testes.
Pesquisas em busca de uma identidade regional

O desenvolvimento da vitivinicultura no Vale do São Francisco, entre outros municípios da região, como Morro do Chapéu, por exemplo, tem apoio fundamental da Embrapa Uva e Vinho – Semi-Árido, localizada em Petrolina. Sob a coordenação do pesquisador Giuliano Elias Pereira, são desenvolvidas pesquisas que permitam estudar os fatores envolvidos na enologia tropical, determinar a composição físico-química e metabólica de uvas e vinhos, além de desenvolver técnicas e processos tecnológicos de vinificação que permitam a obtenção de vinhos com qualidade e tipicidade.
 
Pesquisador Giuliano em degustação de vinhos experimentais.
Na Bahia, políticas de incentivo ao setor
 
A agricultura irrigada trouxe desenvolvimento para o Vale do São Francisco. Novos empregos foram criados e a população tem melhores condições de vida. Nesse contexto, a produção de uvas e vinhos também tem papel importante, já que muitas famílias tiram do trabalho suado nos vinhedos seu sustento. Na Bahia, por exemplo, a Vinícola Ouro Verde emprega 155 pessoas. Mas a expectativa da Secretaria Estadual da Agricultura é aumentar esses números e levar para o Estado novos empreendimentos. Para isso, as empresas que quiserem elaborar vinhos ou sucos de uvas na Bahia podem ter descontos de ICMS de até 81%, inclusive a isenção do pagamento de ICMS para a aquisição de máquinas e equipamentos. “Além desses incentivos fiscais, temos outras vantagens, como a facilidade na logística, já que o porto de Salvador está próximo e possibilita também a exportação, e o clima. Aqui não falta água e não há risco de granizo”, destaca o secretário da Agricultura, Eduardo Salles. Ele e o superintendente da Política do Agronegócio, Jairo Vaz, trabalham para buscar no Rio Grande do Sul empresários interessados em comprar terras e construir duas vinícolas. “O Sul é exemplo de trabalho. Os gaúchos conhecem a tecnologia para produção de vinhos, por isso, queremos que venham para a Bahia. Outro atrativo é o preço das terras. Enquanto que no Vale dos Vinhedos um hectare pode chegar a R$ 500 mil, na Bahia o valor médio é de R$ 3 mil ao hectare. “Aqui os valores são muito atraentes. Com a tecnologia da irrigação colhe-se o ano inteiro. Se no Rio Grande do Sul se produz uma garrafa de vinho a cada real investido, aqui são 10 garrafas a cada real investido”, enfatiza o superintendente. Na Bahia, além do grupo Miolo, outras vinícolas gaúchas, como a Vinícola Valduga, estão em tratativas para investimentos no Vale do São Francisco.

 
Fonte: A Vindima

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