segunda-feira, 1 de julho de 2013

O vinho que derrotou a guerra

Por Patrícia Ferraz

Cozinheiras e vinhateiros vivem às turras no Vale do Bekaa, no Líbano, uma das regiões vinícolas mais antigas do mundo. É que faz parte das tradições culinárias locais usar as folhas de uva frescas para enrolar o charutinho de arroz e a vizinhança pula a cerca sem cerimônia para se servir do ingrediente. Nos últimos anos, porém, a temperatura está cada vez mais alta e para proteger as uvas do calor os produtores precisam deixar mais folhas no pé. Só que para isso, tiveram de contratar seguranças para os vinhedos.
 
A história tem jeito de anedota, mas é pura verdade, contada por Marc Hochar, da família proprietária do Château Musar, a vinícola mais famosa do Líbano.
 
Os vinhos do Château Musar são vendidos no Brasil desde 1995 e importados pela Mistral graças a uma outra história, também com ares de anedota. Ciro Lilla ouviu falar deles numa viagem a Londres, anos antes de se tornar importador. O dono do Château Musar, Serge Hochar (o pai de Marc), havia sido eleito ‘homem do ano’ pela revista inglesa Decanter em 1984 por fazer grandes vinhos em plena guerra civil. “As uvas estavam no lado muçulmano, o Vale do Bekaa, e a vinícola ficava no subúrbio de Beirute, no lado cristão. Às vezes ele nem conseguia vinificar”, conta Ciro Lilla. Ciro provou os vinhos, se impressionou e, anos mais tarde, quando abriu a Mistral, incluiu a vinícola no primeiro portfólio.
 
 
Folhudas. Calor obriga produtores a manter nas vinhas as folhas tradicionalmente usadas para enrolar charutos de arroz.
 
Os vinhos do Château Musar não são fáceis. Originais, intrigantes, têm forte mineralidade e incrível capacidade de envelhecer – mesmo os brancos. Eles são longamente armazenados antes de ir para o mercado, coisa que os produtores fazem cada vez menos, por causa dos custos.
 
O Château Musar Rouge, um tinto de perfume intenso e taninos finos (corte de Cabernet Sauvignon, Carignan e Cinsault), passa um ano em barricas, outro em tanque de concreto, vai para a garrafa e só chega ao mercado sete anos depois da colheita. “Mas consideramos que está pronto a partir dos 15 anos, quando taninos, álcool e açúcar formam uma unidade”, diz Marc Hochar.
 
 
História
 
Vinhos de uvas nascidas a mil metros em plantas centenárias.

São vinhos orgânicos, produzidos em altitude em vinhedos centenários – tintos, a 900 m, e brancos a 1.200 m, em solo calcário. Os tintos não são filtrados e envelhecem em madeira apenas 20% do tempo em barricas novas. A filosofia é a da intervenção mínima. Tem sido assim desde sua fundação, em 1930.
 
A história da vinícola começou na 1ª Guerra, quando Gaston Hochar ficou amigo de um major francês que era produtor em Bordeaux (Ronald Barton, do Chateau Langoa-Barton). Ouviu as histórias do vinhateiro francês e se entusiasmou. Plantou Cinsault, Carignan, Petit Verdot, Mouvèdre e começou a produzir. “Fez umas quatro ou cinco safras sem saber fazer vinho”, diverte-se o neto Marc. Ele conta que foi então que seu pai, Serge, com 17 anos, foi estudar enologia em Bordeaux, onde teve como mestre Émile Peynaud, considerado o pai da enologia moderna. Voltou para casa e assumiu a vinícola em 1959.
 
Até 1975, quase todo o vinho era vendido no Líbano. Mas em 1979, o crítico inglês Michael Broadbent provou o tinto e elogiou. A fama correu. Em 1990, o Château Musar já exportava quase toda a produção. Hoje, são 600 mil caixas por ano.

Desde (muito) antes de Cristo


O Vale do Bekaa, no Líbano, é uma das regiões vinícolas mais antigas do mundo. O vinho surgiu no Oriente Médio, há uns 6 mil anos. Até o islamismo, a costa oriental do Mediterrâneo tinha uma importância vinícola semelhante à da França e Itália, como ressaltam Hugh Johnson e Jancis Robinson no Atlas Mundial do Vinho (Nova Fronteira, 2008). Mas, apesar da tradição, os brancos e os tintos (comparáveis aos bordeaux, para os críticos ingleses) são pouco conhecidos no Ocidente.
 
Fonte: Estadão

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