segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Vinho no padrão da Coca-Cola?

Por Carlos Arruda

O “enologo voador” Michel Rolland, francês conhecido mundialmente por sua consultoria em vinhedos nos quatro cantos do planeta, reafirmou mais uma vez sua tendência para a polêmica, durante uma aula numa escola de negócios em Bordeaux, França.
 
Que vinho beberemos em 2050? Rolland não pode predizer, mas mostrou algumas idéias.
 
Sua principal premissa é que o estado atual da enologia moderna nos permite fazer vinhos com o estilo gustativo que quisermos, e que isso já se faz nos vinhos comerciais.
 
Na base da polêmica, ele comparou essa tendência à Coca-Cola, que produz seu refrigerante mundial adaptado a cada país. “Na ìndia é mais picante, na Europa é mais ácida, no norte dos EUA tem mais sabor de canela”, detalhou. “Cito a Coca Cola apenas como exemplo”, disse ele.
 
Sobre o terroir, a característica de clima e solo que garante a personalidade dos vinhos nos diferentes vinhedos do mundo, ele afirma que isso só é importante nos locais abençoados, os grandes vinhedo míticos como Romanée Conti e Château Lafite, os demais fazem o vinho que o enólogo desejar.
 
As regiões como Bordeaux devem abandonar a idéia de um “monopólio do gosto”, o mercado vai ditar cada vez mais as regras do vinho, completa Rolland.
 
Não tiro a razão do famoso enólogo, afinal mercado é a arte de agradar o cliente...
 
Permito-me aqui expor meu ponto de vista sobre a personalidade tão variada dos vinhos do mundo.
 
Personalidade x Mercado
 
Há quase 16 anos conspirando para a cultura do vinho no Brasil, com o site Academia do Vinho, minha visão dessas declarações é de apreensividade, restando ainda boa parte de esperança.
 
Em minha atividade de consultoria para “garimpo” e escolha de vinhos para importação, tenho o privilégio de degustar muitas centenas de vinhos por ano, o que me permite manter um panorama geral das tendências do mercado de vinho no mundo.
 
Sim, existem vinhos claramente comerciais, produzidos com o único intuito de agradar ao cliente leigo com seu estilo macio, levemente adocicado, brando de taninos e amigável no preço. Isto se vende, e muito.
 
O recente fenômeno do vinho Toro Loco, que ganhou notoriedade com a notícia de ser vencedor em uma degustação com grandes vinhos, levou o mercado à loucura com a procura por essa maravilha de apenas 11 euros!
 
Sem demérito e sem grandes atributos, o Toro Loco é um vinho fácil, macio, e sem a marca de personalidade de sua região de origem. Para mim, sem nenhum atrativo.
 
Há algum tempo li uma opinião de um redator europeu que dizia “adoro os vinhos com defeitos, pois eles são sua marca inconfundível”. Concordo e aplaudo, é exatamente a minha preferência.
 
Ao longo dos anos pude conversar com muitos enólogos, muitos deles pequenos proprietários de negócios de família, perpetuando um modo de ser e fazer vinho aperfeiçoado ao longo de gerações, onde a tradição é a maior marca da personalidade, e sua luta é mantê-la viva e autêntica.
 
Quem já provou um Sgrantino de Montefalco, vinho italiano escuro, tânico, rústico e poderoso, quase imbebível quando jovem? Seus autores o querem assim, pois assim ele existe há séculos.
 
Os Riesling Mild da Alemanha são leves, delicados, levemente doces e têm acidez sutil, brancos tão diferentes dos vibrantes Sauvignon do Vale do Loire na França ou os poderosos Chardonnays da Austrália. Seus autores preservam a tradição de fazer vinhos brancos sutis no tão frio clima germânico, uma fórmula de difícil equilíbrio mantida através de séculos.
 
O sistema de Denominações de Origem (DOC, AOC, DO, DOP, IGT, etc.) foi criado para preservar essa personalidade histórica, mas infelizmente pode-se fazer vinhos “aplainados” mesmo seguindo as regras das regiões. A única garantia é a vontade do vinicultor.
 
Um exemplo: O vinho português Periquita, da casa José Maria da Fonseca, ganhou mercado com seu estilo leve, resultado da uva Castelão Francês. Com tanto sucesso e tantas vendas, seu corte de uvas foi alterado e hoje ele é produzido de forma totalmente diferente de sua origem. Só ficou o nome, famoso e bom vendedor.
 
Outro Exemplo: o Domaine Rolly Gassmann, na Alsácia, Franca, pertence à família há 415 anos. Ali eles produzem um total de 35 vinhos diferentes, resultado de um mapeamento do solo feito pelo trisavô, com parcelas divididas pelos diversos subsolos do local, algumas produzem apenas uma barrica (300 garrafas).
 
Tive a alegria de provar todos os vinhos, ciceronado pelo atual descendente-proprietário, e foi uma inesquecível epopéia de sabores, nuances, detalhes e surpresas. Era a Vinexpo de 2011, e eles estavam lançando a safra 1996 de um Pinot Blanc especial. Me explicou M. Gassmann: meu avô disse que nessa parcela o vinho só fica bom após 15 anos...
 
Pois bem, na Alsácia a AOC Alsace Grand Cru foi criada há pouco tempo, e ele foi autorizado a inscrever quase todos seus vinhedos nessa (comercialmente) prestigiada denominação, mas não o fez porque isso resultaria em uma mistura amorfa de vinhos muito diferentes, de cada parcela, e ele não poderia conviver com essa perda de personalidade... Deus o guarde, e a seus descendentes, M. Gassmann, viva a diversidade!
 
O Futuro dos Vinhos
 
Temos então duas correntes, a pasteurização da facilidade de consumo dos vinhos “comerciais” e a difícil manutenção da personalidade de tantos vinhos em seus “terroir” de origem.
 
Quando falamos de manter a tradição, o estilo, a personalidade de vinhos produzidos de um mesmo jeito há séculos, seguramente recaímos na Europa, berço de toda a vinicultura mundial do nosso tempo.
 
Da mesma forma que encontramos um herdeiro comprometido com a cultura de seus ancestrais, temos muitas propriedades sendo vendidas por descendentes desinteressados, e o trabalho de família se torna um negócio com objetivo apenas lucrativo.
 
Para mim, a grande diversão do vinho é encontrar um exemplar desconhecido, intrigante, surpreeendente e até imbebível, mas mesmo assim uma prova de que vinho é um ser vivo, que traduz o território de seu nascimento e perpetua a cultura de um lugar. Sem essa diversidade, tudo vai ficar muito chato...
 
Nos EUA descobri um clube, Century Club, onde os associados devem comprovar ter bebido vinhos de pelo menos 100 uvas diferentes! As reuniões devem ser no mínimo um grande aprendizado...
 
Chegaremos a uma igualdade tão desinteressante? A resposta é simples: Se nós consumidores, prestigiarmos o autêntico, ele sobreviverá. Se nos rendermos ao vinho fácil, padronizado e sem riscos, os heróis da personalidade desistirão, e teremos apenas para beber... Coca-Cola!
 
Fonte: Academia do Vinho

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