sábado, 2 de janeiro de 2016

Estudos revelam que garrafas de vinho não precisam ficar na horizontal

Um dos dogmas do mundo do vinho – que de tão decantado está enraizado no subconsciente até dos enófilos mais inexperientes – é o fato de guardar as garrafas de vinho sempre (sempre!) deitadas. Isso é importante, pois mantém a rolha umedecida, impedindo que ela resseque, conservando suas qualidades, especialmente no que diz respeito à mínima entrada de oxigênio que favorece o bom envelhecimento do líquido.
 
No entanto, chegou a hora de rever esse conceito, pois dois longos estudos – um da Facultè d’Oenologie de Bordeaux e outro do The Australian Wine Research Institute (AWRI) –, demonstram que a posição da garrafa simplesmente não tem qualquer relevância durante a guarda do vinho. E isso derruba tudo o que aprendemos e pregamos por aí durante anos e anos.
 
Essas duas pesquisas estudaram o ingresso de oxigênio na garrafa de acordo com diferentes tipos de vedantes (rolhas naturais, sintéticas e rosca) e a posição de armazenagem (vertical ou horizontal) com o tempo. O estudo australiano foi além e mediu ainda impactos na composição, cor e sabor dos vinhos testados (um Riesling e um Chardonnay barricado), além de ter feito essa avaliação por mais tempo (cinco anos contra três dos franceses). Ambas as investigações chegaram a conclusões interessantes quanto aos efeitos causados pelas diferentes rolhas usadas, no entanto, um aspecto se sobressaiu: “a orientação da garrafa durante o armazenamento teve pouco efeito na composição dos vinhos examinados”, reportou o relatório australiano, e “as taxas de ingresso de oxigênio foram independentes da posição de armazenagem da garrafa”, atestaram os franceses.
 
Então quer dizer que posso guardar meus vinhos em pé? “Sem qualquer problema!”, garante Paulo Lopes, enólogo PhD que gerencia o departamento de pesquisa e desenvolvimento da Amorim, o maior fabricante de rolhas do mundo, e que liderou a equipe do estudo bordalês. Para ele, os resultados das duas pesquisas citadas mostram muito claramente que as diferenças entre a armazenagem horizontal e vertical são mínimas, independentemente do tipo de rolha, ou seja, mesmo nas de cortiça natural. “Em termos de capacidade de vedação e transferência de oxigênio, a conservação pode ser realizada com a garrafa em pé ou deitada, pois os resultados serão idênticos”, confirma.
 
Horizontal ou vertical?
 
A pesquisa de Lopes e seus colegas bate de frente com outra feita em 2002 por um grupo de cientistas espanhóis. Na época, eles afirmaram que as análises químicas e sensoriais mostraram que o vinho era melhor preservado quando mantido na horizontal. No entanto, os testes atuais usam sistemas mais eficazes de avaliação, como um método colorimétrico (que usa a cor para medir a absorção de determinados elementos em uma solução), por exemplo.
 
Aliás, as primeiras análises feitas sobre o ingresso de oxigênio na garrafas de vinho datam dos anos 1930. O francês Jean Ribéreau-Gayon foi pioneiro e apontou que de 0,1 a 0,38 ml de oxigênio entrava na garrafa (vedada com rolha de cortiça) nas três primeiras semanas depois do engarrafamento e de 0 a 0,07 ml nos quatro meses seguintes.
 
Cerca de 80 anos depois, a pesquisa bordalesa mostra que as rolhas de cortiça, na verdade, deixaram passar 1,7 e 2,3 ml de oxigênio durante os 36 meses (três anos) de estudo quando as garrafas são mantidas deitadas. Essa variação depende da qualidade da rolha (veja matéria sobre rolhas na página 42) e a de categoria Flor (melhor qualidade) permitiu menos ingresso do que a considerada de 1º grau.
 
Além disso, a pesquisa mostrou que a dinâmica do ingresso de oxigênio é maior no primeiro mês após o engarrafamento, com 0,7 para a Flor e 1,3 ml para a de 1º grau, o que chega a representar mais de 50% do total de oxigênio observado ao final dos três anos. Depois do primeiro mês até o final de um ano, a quantidade de oxigênio foi de 0,03 e 0,17 ml por mês. Finalmente, depois de 12 meses, a entrada foi de 0,002 e 0,07 ml por mês até o término do período de estudo.
 
No entanto, o que interessa é a comparação com os números obtidos com as mesmas rolhas, porém, em garrafas mantidas em pé. Aí podemos dizer que há uma surpresa, pois a entrada foi de 1,5 e 2,4 ml de oxigênio, respectivamente, ao final de três anos. Ou seja, uma rolha de alta qualidade, como a Flor, deixou passar até menos oxigênio quando armazenada na vertical do que na horizontal (1,5 contra 1,7 ml) – apesar de a diferença ser desprezível.
 
Continuando a comparação, quando em pé, as rolhas permitiram o ingresso de 0,8 e 1,3 ml de oxigênio no primeiro mês. De dois meses a um ano, os níveis caem para 0,05 e 0,1 ml por mês. Depois disso, ficam entre 0,02 e 0,04 ml por mês até o fim do segundo ano (veja o gráfico com as curvas de ingresso de oxigênio dependendo do tipo de rolha e da posição de armazenamento nas páginas a seguir). Mas, afinal, o que é importante, permitir a entrada de mais ou de menos oxigênio?
 

Oxigênio

“Oxigênio é o pior inimigo do vinho”, já dizia Louis Pasteur, apenas para complementar em seguida: “o oxigênio é quem faz o vinho, é por sua influência que ele envelhece”. Isso mostra o quão dicotômica é a relação desse gás com a bebida. Ao mesmo tempo que uma pequena quantidade garante uma boa evolução do vinho, quando em excesso, o líquido oxida e estraga.
 
É por isso que esse elemento é o alvo de muitas das pesquisas, incluindo essas duas. Sobre esse fenômeno do envelhecimento, o estudo australiano aponta: “Pareceu que uma taxa de ingresso de oxigênio muito alta – como vista nas rolhas sintéticas – levaram a sabores oxidados, assim como taxas muito baixas – como as observadas nas tampas de rosca e de vidro – levaram ao desenvolvimento de aromas reduzidos, de borracha e similares, no vinho”. Nesse caso, ponto para as rolhas de cortiça, as que melhor se comportaram no estudo patrocinado pela associação de produtores da Austrália. Lembrando que foi devido à insatisfação da indústria vitivinícola australiana quanto à qualidade das rolhas naturais que as sintéticas e de rosca se propagaram mundo afora.
 
A pesquisa francesa chega a conclusões semelhantes: “Está claro que as taxas de ingresso de oxigênio são baixas com screw caps e rolhas técnicas, intermediárias com rolhas naturais, e altas com rolhas sintéticas”. As rolhas técnicas usadas no teste foram a 1+1 (que tem um disco de cortiça natural em cada extremidade de um corpo granulado) e a microgranulada. Curiosamente, elas chegaram a permitir a entrada de menos oxigênio do que as tampas de rosca, que variaram de 0,9 a 1,3 ml (quatro tipos foram testados) ao fim de um ano de guarda, enquanto que as rolhas técnicas apresentaram 0,7 (microgranulada) e 0,8 ml (1+1), quando na horizontal, e 0,8 e 1,2 ml respectivamente quando mantidas em pé. Sendo que, assim como os screw caps, o primeiro mês concentrou cerca de 90% da entrada de oxigênio na garrafa. Na tampa de rosca, contudo, 90% do ingresso ocorreu nos primeiros dois dias e depois mostrou-se totalmente hermética. Com isso, os cientistas estimam que boa parte do oxigênio que entra nas garrafas com screw cap está relacionada à exposição ao ar na hora do engarrafamento e, uma porção mínima, ao oxigênio de dentro da tampa.

Entrada de oxigênio?

Aliás, a discussão sobre como se dá o ingresso de oxigênio na garrafa, especialmente quando se trata das rolhas de cortiça, é extensa e inconclusiva. “O mecanismo [de entrada] permanece desconhecido e serão necessárias pesquisas mais aprofundadas para elucidar esse fenômeno, que pode ocorrer por difusão ou infiltração, ou ambos”, aponta o estudo francês. De acordo com Paulo Lopes, contudo, boa parte (ou até mesmo a totalidade) do oxigênio que ingressa na garrafa com o tempo já está dentro da própria rolha. “Há bons indícios que levam à essa conclusão”, diz.
 
Isso estaria explicado pelo fato de a difusão de oxigênio observada no primeiro mês (fase crítica) ser alta, para então decair até o final de 12 meses e seguir mínima e estável até o fim do estudo. Nos gráficos, vê-se que as rolhas de 1o grau permitiram mais oxigênio na garrafa do que as Flor e, segundo os cientistas, “é possível que elas contenham mais ar dentro de suas estruturas (pois têm um coeficiente de porosidade maior), que se propaga da rolha para a garrafa durante o primeiro mês”. Ou seja, a vedação pela rolha, ao contrário do que se pensa, impediria as trocas gasosas, na verdade.
 
Como guardar então?
 
Depois de tudo isso, estaria aqui então os porquês de alguns produtores de Champagne e também de Vinho do Porto afirmarem que seus vinhos devem ser guardados em pé? Sim, pois ainda há estudos feitos pelas casas de Champagne que dizem não haver grandes diferenças entre espumantes envelhecidos na vertical ou na horizontal, apesar de as avaliações ligeiramente favorecerem as garrafas mantidas em pé.
 
Mesmo reafirmando que simplesmente não importa a posição de armazenagem, Lopes recomenda guardar deitados – como manda o figurino – os vinhos feitos para envelhecer. Isso não por qualquer receio de sua pesquisa estar errada, mas devido a outro estudo que avalia a migração de compostos fenólicos da rolha para o vinho. “O vinho pode, sim, ser armazenado em pé, no entanto, face aos novos resultados que mostram que existe um ‘aporte’ de compostos da rolha para o líquido, a conservação deitada poderá ser benéfica, pois facilitará a migração desses compostos para a bebida e estou certo de que eles irão contribuir para o envelhecimento equilibrado do vinho em garrafa”, aponta.
 
Segundo algumas pesquisas, compostos fenólicos como os ácidos gálico, protocatecuico e caféico, vanilina, além de taninos, podem passar da rolha para o vinho e, de certa maneira (ainda não evidenciada completamente), também contribuir para o envelhecimento.
 
Por outro lado, se pensarmos que, além desses citados, outros compostos, como o TCA, também podem migrar para o vinho quando o líquido está em contato com a rolha, talvez seja melhor manter as garrafas em pé.
 
Matt Holdstock, enólogo da AWRI, lembra, contudo, que os experimentos foram conduzidos em ambiente controlado com as garrafas mantidas em temperatura constante, próxima de 20oC, e umidade relativa de 65%. Ele aponta que, na pesquisa australiana, os mesmos vinhos em condições não controladas mostraram uma maior taxa de escurecimento nas garrafas guardadas em pé. “Isso indica que, se você não tiver esses fatores sob controle, manter vinhos em pé pode acelerar o envelhecimento”, diz o pesquisador. Lembrando que, diante de alterações de temperatura, o volume do líquido pode variar (contraindo com o frio e expandindo com o calor – o que pode expelir a rolha) e, sem umidade, o vedante pode secar (perdendo suas propriedades elásticas – permitindo a entrada de ar ou saída do líquido). Ou seja, se quiser guardar suas garrafas em pé, não há problema, só tenha cuidado com a umidade e a temperatura.
 
 Por: Arnaldo Grizzo
 Fonte: Revista Adega 

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