Cozinheiras e vinhateiros vivem às turras no Vale do Bekaa, no Líbano, uma das
regiões vinícolas mais antigas do mundo. É que faz parte das tradições
culinárias locais usar as folhas de uva frescas para enrolar o charutinho de
arroz e a vizinhança pula a cerca sem cerimônia para se servir do ingrediente.
Nos últimos anos, porém, a temperatura está cada vez mais alta e para proteger
as uvas do calor os produtores precisam deixar mais folhas no pé. Só que para
isso, tiveram de contratar seguranças para os vinhedos.
A história tem jeito de anedota, mas é pura verdade, contada por Marc Hochar, da
família proprietária do Château Musar, a vinícola mais famosa do Líbano.
Os vinhos do Château Musar são vendidos no Brasil desde 1995 e importados
pela Mistral graças a uma outra história, também com ares de anedota. Ciro Lilla
ouviu falar deles numa viagem a Londres, anos antes de se tornar importador. O
dono do Château Musar, Serge Hochar (o pai de Marc), havia sido eleito ‘homem do
ano’ pela revista inglesa Decanter em 1984 por fazer grandes vinhos em
plena guerra civil. “As uvas estavam no lado muçulmano, o Vale do Bekaa, e a
vinícola ficava no subúrbio de Beirute, no lado cristão. Às vezes ele nem
conseguia vinificar”, conta Ciro Lilla. Ciro provou os vinhos, se impressionou
e, anos mais tarde, quando abriu a Mistral, incluiu a vinícola no primeiro
portfólio.
Folhudas. Calor obriga produtores
a manter nas vinhas as folhas tradicionalmente usadas para enrolar charutos de
arroz.
Os vinhos do Château Musar não são fáceis. Originais, intrigantes, têm forte
mineralidade e incrível capacidade de envelhecer – mesmo os brancos. Eles são
longamente armazenados antes de ir para o mercado, coisa que os produtores fazem
cada vez menos, por causa dos custos.
O Château Musar Rouge, um tinto de perfume intenso e taninos finos (corte de
Cabernet Sauvignon, Carignan e Cinsault), passa um ano em barricas, outro em
tanque de concreto, vai para a garrafa e só chega ao mercado sete anos depois da
colheita. “Mas consideramos que está pronto a partir dos 15 anos, quando
taninos, álcool e açúcar formam uma unidade”, diz Marc Hochar.
Vinhos de
uvas nascidas a mil metros em plantas centenárias.
São vinhos orgânicos, produzidos em altitude em vinhedos centenários –
tintos, a 900 m, e brancos a 1.200 m, em solo calcário. Os tintos não são
filtrados e envelhecem em madeira apenas 20% do tempo em barricas novas. A
filosofia é a da intervenção mínima. Tem sido assim desde sua fundação, em
1930.
A história da vinícola começou na 1ª Guerra, quando Gaston Hochar ficou amigo
de um major francês que era produtor em Bordeaux (Ronald Barton, do Chateau
Langoa-Barton). Ouviu as histórias do vinhateiro francês e se entusiasmou.
Plantou Cinsault, Carignan, Petit Verdot, Mouvèdre e começou a produzir. “Fez
umas quatro ou cinco safras sem saber fazer vinho”, diverte-se o neto Marc. Ele
conta que foi então que seu pai, Serge, com 17 anos, foi estudar enologia em
Bordeaux, onde teve como mestre Émile Peynaud, considerado o pai da enologia
moderna. Voltou para casa e assumiu a vinícola em 1959.
Até 1975, quase todo o vinho era vendido no Líbano. Mas em 1979, o crítico
inglês Michael Broadbent provou o tinto e elogiou. A fama correu. Em 1990, o
Château Musar já exportava quase toda a produção. Hoje, são 600 mil caixas por
ano.
Desde (muito) antes de Cristo
O Vale do Bekaa, no Líbano, é uma das regiões vinícolas mais antigas do
mundo. O vinho surgiu no Oriente Médio, há uns 6 mil anos. Até o islamismo, a
costa oriental do Mediterrâneo tinha uma importância vinícola semelhante à da
França e Itália, como ressaltam Hugh Johnson e Jancis Robinson no Atlas Mundial
do Vinho (Nova Fronteira, 2008). Mas, apesar da tradição, os brancos e os tintos
(comparáveis aos bordeaux, para os críticos ingleses) são pouco conhecidos no
Ocidente.
Fonte: Estadão
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