Não são incomuns no Brasil degustações de bebidas “às cegas”, realizadas no escuro ou com os olhos vendados, para exigir mais do paladar e do olfato do apreciador. Raras, entretanto, são as versões literais desses eventos, como uma degustação realizada sábado em Bento Gonçalves tendo por convidados especiais 20 pessoas com deficiência visual.
A iniciativa, realizada em conjunto pelas vinícolas Pericó, de Santa Catarina, e Aurora, do Rio Grande do Sul, teve lugar na sala de degustação da loja Aurora, em Bento Gonçalves, e foi ministrada por um sommelier de experiência internacional, o jornalista e escritor italiano Roberto Rabachino, que já esteve muitas vezes no Brasil ministrando cursos sobre vinhos.
De estatura mediana, elegantemente trajado, Rabachino é o que se esperaria de um palestrante italiano: entusiasmado, movimenta-se o tempo todo, falando alto e complementando a maioria de suas declarações com vigorosos gestos de mão – às vezes se entusiasma tanto que deixa para trás seu tradutor, o enólogo Jefferson Sancineto Nunes.
– Eu não uso o termo “deficiente visual”. Prefiro usar a terminologia “diversamente hábil”. E como vocês têm o paladar e o olfato muitas vezes mais aguçado do que aqueles que enxergam, é possível que, na média, sejam mais inteligentes do que eu em matéria de vinho – disse Rabachino.
Nas mesas da sala de degustação, sentados dois a dois, os 20 cegos ouvem atentamente. O grupo é heterogêneo, composto de pessoas de diferentes localidades e pertencentes a distintas associações gaúchas e catarinenses, como a Associação dos Deficientes Visuais de Bento Gonçalves (ADVBG) ou a Associação de Deficientes Visuais de Itajaí e Região (ADVIR).
O nível de familiaridade com o vinho também variava, de jovens que nem bebem muito, como a cantora Caroline Rasador, 28 anos, de Monte Belo do Sul, até o especialista Rogério Francisco Trucolo, 60 anos, capaz de reconhecer não apenas a variedade das uvas como a vinícola apenas pelo olfato, e sem precisar aproximar muito o nariz da taça.
Segundo ele, o mito de que as pessoas cegas desenvolvem mais determinado sentido, não dá conta da experiência real, que envolve aprender a tirar proveito das informações fornecidas por outras habilidades.
– É uma questão de disciplina para desenvolver habilidades que compensem a falta da visão – diz ele, que é terapeuta holístico e ficou cego aos 24 anos, ao tentar desarmar alguns foguetes que não haviam estourado em uma comemoração de fim de ano.
Rogério foi a inspiração para o encontro, cuja ideia surgiu no fim de março, durante uma conversa de sua irmã Sandra Maria Trucolo, diretora do laboratório Enolab, em Flores da Cunha, com o empresário Wandér Weege, proprietário da vinícola Pericó. Ela comentou que o irmão tinha formação de sommelier. O papo derivou para a ideia do evento, concretizada após o diretor-geral da Aurora, Além Guerra, ceder as instalações.
Momento de descobertas e memórias
Enquanto ministra sua aula, Rabachino intercala considerações sobre a história do vinho em questão com comentários sobre aromas, sabores e propriedades.
– Para quem não pode ver o vinho, como vocês, posso dizer que, em 90% dos casos, se o vinho tem aroma de flores ou de frutas de polpa branca ou amarela, como maçã, pêssego ou banana, é um vinho branco. Se tiver aroma de pimenta, de especiarias, de frutas vermelhas maduras, é um tinto – ensina Rabachino.
Ao fim da aula, a habilidade do sommelier em passar informações de forma simples foi elogiada por Anderson Dall’Agnol, 21 anos, funcionário do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul em Bento Gonçalves.
– Achei muito boa a forma como ele consegue explicar as coisas de modo simples. Não tenho muito conhecimento ou experiência com vinhos, e não tive dificuldade alguma para compreender – foi a avaliação de Anderson, que tem 20% de visão.
Comprovando a afirmação feita logo no início da aula por Rabachino, de que o “vinho é um momento de comparação com o mundo externo”, ao sabor da degustação afloram percepções não apenas sobre a bebida, mas sobre si mesmos.
– Hoje eu consegui entender por que eu não gosto muito de vinho branco. Eu não gosto de aromas florais, nem perfume assim me agrada – disse Vera Fuks, 33 anos, colega de Anderson no Instituto Federal.
Outros tiveram despertadas na degustação memórias íntimas, como o presidente da Associação dos Deficientes Visuais de Bento Gonçalves, Volmir Raimondi, 46 anos, ao degustar um dos merlots apresentados no encontro – o aroma e o sabor da bebida o transportaram por momentos para a juventude, quando provou um vinho semelhante produzido por seu pai, que trabalhava em Bento Gonçalves como cantineiro:
– Cresci ligado ao vinho. Fiquei feliz ao ouvir ele dizer que merlot é a uva que melhor representa o vinho produzido no Brasil.
Por: Carlos André Moreira
Fonte: Zero Hora
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