Por
Andréia Debom
Fotos
Fabiana Lavoratti
Que imagem você tem do sertão do nordeste brasileiro? Solo árido, sol, caatinga,
jegues? Agora, olhe para a foto ao lado. A imensidão de terras, antes pincelada
de cinza, agora tem o verde das plantações como cor predominante. É o Vale do
São Francisco, uma área de terras banhada pelo grandioso Rio São Francisco e
situada entre os Estados da Bahia e Pernambuco. Milagre? Não. É a tecnologia da
agricultura irrigada. Nessas terras férteis as frutas são destaque. Há uma
mistura de cores, aromas e sabores. Acerola, caju, manga, melancia e uva. Sim, a
videira, planta que reina absoluta na Serra Gaúcha e que é a base para o
sustento de muitas famílias também frutifica neste oásis nordestino. Nessas
terras são plantadas variedades para consumo in natura e também para elaboração
de vinhos finos, que inclusive têm recebido prêmios nacionais e internacionais
nos últimos anos. O último deles foi para um tinto da variedade Syrah elaborado
pela Vinícola Ouro Verde, empresa do grupo Miolo. O Testardi conquistou o
primeiro lugar na categoria Tinto Nacional na degustação Top Ten promovida
durante o Expovinis 2012, maior salão do vinho realizado na América Latina.
Terroir diferenciado
Cada
garrafa de vinho traz uma história, e nenhuma é igual a outra. O Brasil possui
nove regiões vitícolas. Cada uma delas elabora produtos com tipicidades
distintas, já que os fatores naturais e humanos se diferem. É o chamado terroir.
O Vale do São Francisco se caracteriza por apresentar vinhos tropicais, produtos
leves, sem pretensões de guarda, fáceis de beber e com boa relação
qualidade/preço. Esta região está integrada pelos municípios de Casa Nova, na
Bahia; e Petrolina, Lagoa Grande e Santa Maria da Boa Vista, em Pernambuco. Por
lá, a produção de vinhos iniciou por volta dos anos de 1980, por meio da
vinícola Botticelli, e foi reforçada no início dos anos 2000 com a chegada de
grandes investidores, entre eles os grupos Miolo, da Serra Gaúcha, e Dão Sul, de
Portugal.
Atualmente, existem seis vinícolas, uma na Bahia e cinco em
Pernambuco, que produzem cerca de sete milhões de litros de vinhos finos por
ano, em 700 hectares de vinhedos. A atividade emprega cerca de 6 mil pessoas,
direta e indiretamente, chegando a 30 mil se for incluída a produção de uvas de
mesa. A região está situada entre os paralelos 8 e 9 do Hemisfério Sul, em clima
tropical semiárido. Está a 350m de altitude, com média anual de temperatura de
26ºC, índice de pluviosidade de aproximadamente 550 mm, concentrada entre os
meses de janeiro a abril.
Um dos fatores que mais chama a atenção no Vale
do São Francisco é a capacidade de a colheita acontecer durante o ano todo, caso
único no mundo. Numa mesma vinícola é possível observar todos os ciclos do
vinhedo, desde o plantio até o momento em que as uvas são colhidas. “Por se
tratar de uma região de clima quente, com alta luminosidade e água em abundância
para a irrigação, as empresas vinícolas fazem um planejamento da época em que
pretendem colher. Depois, realizam a poda de produção das videiras em diferentes
períodos, adotando, com isso, o sistema de escalonamento para a poda dos lotes,
o que proporciona períodos diferentes de colheita. Entre uma safra e outra,
reduzem a irrigação para 15% a 20%, nos períodos secos, por cerca de 20 a 30
dias (este corresponde ao período de inverno em regiões temperadas). Em seguida,
podam, aplicam cianamida hidrogenada para homogeneizar a brotação, aumentam a
irrigação para 100% do coeficiente de cultura e um novo ciclo é iniciado”,
explica o pesquisador das áreas de viticultura e enologia da Embrapa Semi-Árido,
Giuliano Elias Pereira. O pesquisador também destaca outra característica
importante das empresas: a possibilidade de escalonamento da produção. Com isso,
não são necessárias grandes estruturas para vinificação em função da não
concentração da produção em um período curto.
As variedades mais
utilizadas para a elaboração de vinhos tintos finos são Syrah, Tempranillo e
Cabernet Sauvignon. A estas cepas se soma as variedades Alicante, Aragonês,
Tannat e Rubi Cabernet. Mas há outra que tem se destacado nas pesquisas da
Embrapa Semi-árido: é a Petit Verdot. “Acredito no potencial desta uva. Ela pode
ser a uva emblemática desta região, já que Syrah podemos encontrar em várias
partes do mundo”, diz o pesquisador. Para vinhos brancos, Chenin Blanc e Moscato
Cannelli se destacam, além da Sauvignon Blanc, Verdejo e Viognier. Para os
espumantes, ganham espaço as variedades Itália, Chenin Blanc e Syrah. “Os vinhos
apresentam características interessantes. Os brancos são leves, com aromas
florais, fáceis de serem consumidos. Os tintos são variados, desde vinhos leves,
jovens, até vinhos mais encorpados, que passam por algum período em barricas”,
pontua Pereira. Os espumantes naturais são, na maioria, secos ou demi-sec, além
do moscatel.
O sistema de condução mais utilizado é a latada, seguido
pelo espaldeira. No entanto, outras formas estão sendo testadas pela Embrapa
Semi-Árido. Uma deles é o lira modulável, um sistema de condução usado com
sucesso em diversos países, cujos trabalhos realizados são obrigatoriamente
manuais. A lira modulável, que pode ser mobilizada em determinados períodos do
ciclo vegetativo da videira, pode ser um alternativa para a região, pelo fato de
permitir a mecanização dos tratos culturais nos vinhedos. O estudo está sendo
feito em parceria com o INRA Supagro de Montpellier, da França, e conta com a
participação do especialista Alain Carbonneau, que está realizando estudos
comparativos entre o uso da espaldeira e da lira modulável em uvas brancas e
tintas, com diferentes porta-enxertos, no intuito de avaliar a melhor combinação
que permitirá melhorar a tipicidade dos vinhos e reduzir os custos de produção.
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Poda das Videiras |
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No vale é possível encontrar, na mesma época, vinhedos em floração... |
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... em fase de amadurecimento da fruta... |
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... e com as uvas maduras. |
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Após a colheita acontece a retirada das folhas e posteriormente a irrigação. |
Vinícola Ouro Verde
De um
lado da estrada, terra árida, jegues e bodes andando tranquilamente. De outro,
vinhedos imensos, repletos de frutos. Na companhia dessas vinhas, mandacarus e
cactos. O Vale do São Francisco é mesmo surpreendente. Na terra onde tudo
frutifica, percebe-se que muitas pessoas depositam suas expectativas. Alguns
desses personagens são peças chave para a construção desse sucesso. Pessoas como
o empresário gaúcho Eurico Benedetti. Há mais de 10 anos ele está à frente da
Vinícola Ouro Verde, localizada no município de Casa Nova, na Bahia. Entusiasta
do potencial da região para vinhos tropicais, Benedetti também incentiva o
enoturismo. Tanto é que no ano passado, em parceria com o empresário Luiz
Rogério Rocha Pereira, apostou num passeio turístico denominado Vapor do Vinho,
por meio do qual os turistas passeiam pelo Rio São Francisco e Barragem do
Sobradinho em uma embarcação que serve vinhos e espumantes e ao final param na
Vinícola Ouro Verde para conhecer a empresa e participar de um curso de
degustação de vinhos. A vinícola, inaugurada em 2008, ainda não possui um
restaurante para os turistas, mas a construção de um está nos planos do
empresário. Somente em 2011 a empresa recebeu 16,3 mil visitantes.
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Instalações da Vinícola Ouro Verde, onde são elaborados os produtos da marca Terranova. |
A história da Vinícola Ouro Verde iniciou em 2002, quando Benedetti, que no Rio
Grande do Sul é empresário do setor moveleiro, decidiu adquirir a Fazenda Ouro
Verde. Na época, a propriedade produzia uvas de mesa para consumo in natura. Ir
para o nordeste seria uma forma de ampliar os negócios da família no setor
vitivinícola, já que no Rio Grande do Sul a família sempre teve ligação com o
vinho. Logo depois da compra da área, iniciaram os testes para verificar o
potencial das uvas e posterior elaboração de vinhos. Os resultados obtidos
mostraram que com as uvas moscatéis se poderia elaborar vinhos espumantes
frescos, mas seria necessária alta tecnologia para vinificação, já que a região
é muito quente, o que acaba sendo um problema para o vinho. Feitos os
investimentos, hoje o espumante, especialmente o moscatel, caiu no gosto dos
consumidores, sendo o carro-chefe das vendas da empresa.
E se os
espumantes têm apresentado resultados positivos, os tintos também. Prova disso é
que o vinho Testardi Syrah 2010 foi destaque neste ano na degustação Top Ten que
acontece durante a Expovinis. O vinho foi elaborado por meio de fermentação
integral dentro de barricas novas de carvalho e envelheceu em barricas de
carvalho por 12 meses. Nas brancas, a Chenin Blanc tem respondido positivamente,
entre outras. Outras cepas vitiviníferas estão em testes. “Esta região tem muito
potencial. Aqui não se desenvolvem fungos, praticamente não tem umidade. E isso
representa muito para o vinho. Os vinhos finos daqui carregam características
dessa região e podem ser trabalhados sem problemas. Na Serra Gaúcha temos 120
anos de cultura; aqui, estamos aprendendo a trabalhar”, destaca Benedetti, que
salienta também a qualidade do suco que pode ser feito com uvas do Vale.
A Vinícola Outro Verde produz anualmente dois milhões de litros entre
vinhos e espumantes, em 200 hectares próprios, e mais 520 mil litros de vinho
para brandy. Até 2018, a empresa do grupo Miolo, que produz a linha Terranova,
tem estimativa de produzir cinco milhões de litros de vinhos e 4,8 milhões de
litros de vinhos para brandies, ampliando os vinhedos para 400 hectares.
Vinícola Vinibrasil
Produzir uvas no calor dos trópicos brasileiros. A ideia poderia ser
vista como um tanto estranha. Não para um grupo português, que viu nas terras
banhadas pelo Velho Chico uma oportunidade de ampliar seus negócios e se
internacionalizar. Em 2002, o Grupo Dão Sul, um dos maiores de Portugal, depois
de fazer várias pesquisas, inclusive no Rio Grande do Sul, decidiu investir em
vinhedos no Vale do São Francisco, especificamente no município de lagoa Grande,
em Pernambuco.
“Quando chegamos nesta região já havia alguns estudos que
afirmavam que aqui poderíamos cultivar uvas finas, mas não havia nada que nos
indicasse a variedade da uva, o que tipo de porta-enxerto. Por isso, o primeiro
projeto que fizemos foi um campo experimental. Pegamos algumas variedades que
tinham potencial para a região, e eram comercialmente viáveis para nós, e
plantamos”, conta o enólogo da Vinibrasil, Ricardo Henriques. Hoje esta área
para experimentos, de quase 6 hectares, tem 25 variedades, além de um banco
genético com mais 50. As 15 cepas que mais se adaptaram estão implantadas em 200
hectares, entre elas Cabernet Sauvignon, Syrah, Aragonês, Touriga Nacional,
Alicante Bouschet e Moscato Canelli.
A tecnologia empregada para a
irrigação das vinhas e elaboração do vinho rendeu à empresa, em 2006, o Prêmio
Finep de Inovação Tecnológica. Além da distinção na área técnica, os vinhos da
empresa receberam alguns destaques importantes, entre eles o de ser o melhor
tinto brasileiro no Concurso Internacional de Vinho do Brasil, em 2003; o
primeiro vinho brasileiro a receber 83 pontos pela revista Wine Spectator, uma
das mais importantes do setor mundialmente, em 2004; e o melhor tinto brasileiro
na degustação Top Ten, na Expovinis 2006.
A capacidade da vinícola é de
1,8 milhão de litros por ano. Desse total, mais da metade do que é produzido é
de vinhos brancos, tintos e rosés. A outra parte, 40%, é espumante. “Mas nosso
objetivo, já neste ano, é aumentar a quantidade de espumantes, já que o mercado,
especialmente o brasileiro, tem respondido bem a este produto”, conta o
enólogo.
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Ricardo Henriques, enólogo da Vinibrasil. |
Vinho na Chapada Diamantina
baiana
Além do Vale do São Francisco, a Bahia investe em pesquisas para
ampliar a área da vitivinicultura no Estado. Um bom exemplo é a cidade de Morro
do Chapéu, distante pouco mais de 400 quilômetros de Casa Nova. Os vinhedos
experimentais, localizados a 1.200 metros de altitude – no Vale do São Francisco
a altitude é de 350 metros – foram implantados em fevereiro de 2011, uma
parceria entre a Secretaria Estadual da Agricultura, Embrapa, Empresa Baiana de
Desenvolvimento Agrícola, Associação de Produtores do município e prefeitura. “Em Morro
do Chapéu a altitude compensa a latitude, fazendo com que as videiras respondam
diferentemente. As avaliações estão sendo feitas em diversas variedades
implantadas, onde serão determinadas aquelas que serão divulgadas aos
produtores, como aptas a serem utilizadas comercialmente”, explica o pesquisador
da Embrapa Uva e Vinho, Giuliano Elias Pereira. Outro fator positivo é que nesta
região a temperatura pode chegar aos 12ºC. Mesmo assim, é necessária a
irrigação, já que o verão é quente. O vinhedo experimental, pouco mais de um
hectare, possui 10 variedades plantadas. Entre os destaques está a Sauvignon
Blanc e a Malbec. A previsão é de uma colheita por ano.
As primeiras uvas
do Morro do Chapéu nem foram colhidas, mas a possibilidade de ter o vinho como
um produto local anima os moradores. Tanto é que diversas pessoas estão
envolvidas no projeto, seja na organização e acompanhamento ou na torcida para
que ele dê certo. Uma delas é Odilésio Gomes. Empresário do setor hoteleiro e
presidente da associação de produtores, ele vê na vitivinicultura uma chance de
desenvolver a agricultura familiar no município que já é produtor de outras
frutas. “Temos que adequar a vocação desta terra para a cultura certa. A
viticultura irá dar esse aproveitamento”, diz Gomes.
A ideia de plantar
vinhas em Morro do Chapéu surgiu em 2010, logo após a visita do francês Cristian
Jojô (presidente da Associação de Produtores de Vinhos e Champanhes da França).
A convite do Superintendente da Política do Agronegócio, Jairo Vaz, ele fez uma
análise prévia de solo e clima e destacou o potencial para a cultura. Depois
disso, iniciaram as tratativas entre governo, Embrapa e associação de produtores
para de iniciar o projeto de plantio do vinhedo experimental. “Depois de avaliar
o potencial enológico das uvas e dos vinhos esta região poderá ser uma
referência em termos de vinhos finos de altitude”, afirma o pesquisador da
Embrapa, Giuliano Pereira.
Além de Morro do Chapéu, outra cidade na
Chapada Diamantina, Mucugê, possui um vinhedo experimental. Por lá, as uvas
serão colhidas em 2013.
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Diversas variedades estão em testes. |
Pesquisas em busca de uma
identidade regional
O desenvolvimento da vitivinicultura no Vale do São
Francisco, entre outros municípios da região, como Morro do Chapéu, por exemplo,
tem apoio fundamental da Embrapa Uva e Vinho – Semi-Árido, localizada em
Petrolina. Sob a coordenação do pesquisador Giuliano Elias Pereira, são
desenvolvidas pesquisas que permitam estudar os fatores envolvidos na enologia
tropical, determinar a composição físico-química e metabólica de uvas e vinhos,
além de desenvolver técnicas e processos tecnológicos de vinificação que
permitam a obtenção de vinhos com qualidade e tipicidade.
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Pesquisador Giuliano em degustação de vinhos experimentais. |
Na Bahia, políticas de incentivo
ao setor
A agricultura irrigada trouxe desenvolvimento para o Vale do São
Francisco. Novos empregos foram criados e a população tem melhores condições de
vida. Nesse contexto, a produção de uvas e vinhos também tem papel importante,
já que muitas famílias tiram do trabalho suado nos vinhedos seu sustento. Na
Bahia, por exemplo, a Vinícola Ouro Verde emprega 155 pessoas. Mas a expectativa
da Secretaria Estadual da Agricultura é aumentar esses números e levar para o
Estado novos empreendimentos. Para isso, as empresas que quiserem elaborar
vinhos ou sucos de uvas na Bahia podem ter descontos de ICMS de até 81%,
inclusive a isenção do pagamento de ICMS para a aquisição de máquinas e
equipamentos. “Além desses incentivos fiscais, temos outras vantagens, como a
facilidade na logística, já que o porto de Salvador está próximo e possibilita
também a exportação, e o clima. Aqui não falta água e não há risco de granizo”,
destaca o secretário da Agricultura, Eduardo Salles. Ele e o superintendente da
Política do Agronegócio, Jairo Vaz, trabalham para buscar no Rio Grande do Sul
empresários interessados em comprar terras e construir duas vinícolas. “O Sul é
exemplo de trabalho. Os gaúchos conhecem a tecnologia para produção de vinhos,
por isso, queremos que venham para a Bahia. Outro atrativo é o preço das terras.
Enquanto que no Vale dos Vinhedos um hectare pode chegar a R$ 500 mil, na Bahia
o valor médio é de R$ 3 mil ao hectare. “Aqui os valores são muito atraentes.
Com a tecnologia da irrigação colhe-se o ano inteiro. Se no Rio Grande do Sul se
produz uma garrafa de vinho a cada real investido, aqui são 10 garrafas a cada
real investido”, enfatiza o superintendente. Na Bahia, além do grupo Miolo,
outras vinícolas gaúchas, como a Vinícola Valduga, estão em tratativas para
investimentos no Vale do São Francisco.
Fonte: A Vindima